Retrospectiva 2018 do Flash Fiction
Em 2018 foram publicados 38 drops no Flash Fiction.
Sabe aquela regra humana dos 5 segundos que se aplica à comida que cai no chão? (Pra nós duendes são 5 dias; o limo, a terra e os fungos são um tempero e tanto). Então. Aqui aplicamos uma regra análoga pra essa primeira quinzena do ano como publicações do ano passado. O patrão Santiago Santos ficou chateado porque os drops já tavam embalados na fábrica, mas a culpa foi em parte dele. No churrasco de confraternização de final do ano, ele achou que, dados os cinco anos da nossa escravização voluntária, merecíamos algo melhor. E eis que vieram as linguiças com limão siciliano e ervas, as picanhas gordinhas e os engradados de Heineken. Ficamos tão felizes que o coma alcoólico se arrastou e a ressaca foi a mais longa até hoje (um dos nossos ainda não acordou do coma, quis fazer viradinha de licor de pequi pra encerrar com chave de ouro, e a gente avisou…).
Como sempre, tentamos fazer nossa própria eleição interna, com direito a justificativas em gráfico dos preferidos da equipe, mas a megalomania e falta de apreço conhecidas de longa data do nosso mestre se mostraram novamente inabaláveis, e postamos aqui a sua lista dos seus 5 melhores na íntegra, com seus habituais comentários de bastidores.
Para o ano de 2019 (pro que resta dele), o patrão vem conspirando pra criar algo diferente do que já rolou nesses 5 anos de FF. Pelo jeito, é a ideia mais megalomaníaca a sair da cabeça do muchacho. Então, aguardemos. Queríamos antecipar a data de início aqui, mas dado o nosso deslize, fomos proibidos. Em breve, muito em breve, novas infos.
Tiraremos o resto de janeiro pra dar uma geral no lado de cá do Rio Cuiabá, que tá uma sujeira só. Aproveite pra jogar fora as meias velhas e dar uma geral naquele quartinho dos fundos você também.
Inté!
TOP 5 DO FLASH FICTION EM 2018
#5 – As muitas vidas do açougue do caolho (FF #430)
“A fagulha pra esse drop, como foi muito comum em 2018, foi uma imagem forte de algum seriado que assistia na época. Nesse caso, a segunda temporada de Fargo, uma série baseada no fodástico filme homônimo dos irmãos Coen de 1996, criada e co-escrita por Noah Hawley, o mesmo que tem feito um trabalho ultra psicodélico e digno dos X-Men do Grant Morrison na mais recente série Legion. Mas divago. O que me marcou foram as passagens do personagem Ed Blumquist (Jesse Plemons) em seu trabalho de assistente de açougueiro. Na série, ele também planeja comprar e tocar açougue do seu chefe. Essa foi a imagem por trás do conto, o resto foi criado tendo em mente uma cidade pequena e pessoas e famílias que se conhecem há gerações, narrados em segunda pessoa por esse conhecido próximo onisciente que vai e volta na cronologia, estabelecendo a linha do tempo do açougue. O personagem principal é o próprio estabelecimento, penso, narrado através daqueles que trabalharam nele.”
#4 – Uma montanha que se ergue do vale em dia de chuva (FF #439)
“O primeiro de uma série do personagem Matanari. Não achei que fosse se tornar uma série, mas logo vieram o segundo (FF #442) e o terceiro (FF #447). O resultado aqui é muito mais próximo do material que o inspirou, que é o mangá Path of the Assassin, escrito por Kazuo Koike e desenhado por Goseki Kojima, a mesma dupla do fantástico Lobo Solitário, publicado no Japão entre 1978 e 1984. Mais do que a história do suppa ou shinobi ou ninja Hattori Hanzo e do daimyo Ieyasu Tokugawa, é a história da relação entre os dois, que com o tempo se torna também uma forte amizade. Hattori Hanzo se tornou o mais habilidoso suppa de sua época, e foi em grande parte responsável pelo sucesso nas intrigas políticas e nos combates de seu senhor, que se tornaria o primeiro xogum da terceira linhagem do xogunato japonês, a Tokugawa, que duraria de 1600 até a Restauração Meiji, em 1868. A história segue os personagens desde que são reunidos, por volta dos 15 anos de idade, até pouco antes do início do xogunato. Matanari é um suppa baseado em Hattori Hanzo (se você acha esse nome familiar, não é coincidência – o suppa serviu de base para muitos personagens da cultura pop, e até então minha referência era a do forjador de espadas de Kill Bill, de Quentin Tarantino) e os coadjuvantes seriam algo como amálgamas de outros personagens e figuras da época, situados aqui em uma história de intrigas à parte. Alguns termos e características culturais refletem também a profunda pesquisa histórica feita por Koike.”
#3 – Dos buracos da estrada de chão (FF #419)
“A imagem inspiradora aqui é da série Boardwalk Empire, de Terence Winter, que conta a história do império de contrabando de Nucky Thompson (Steve Buscemi) em Atlantic City. A história começa na noite do estabelecimento da proibição das bebidas alcoólicas nos EUA em 1920 e vai até a sua revogação pelo congresso em 1933, e envolve grandes nomes que enriqueceram e se tornaram famosos na época, como Al Capone, Arnold Rothstein, Lucky Luciano, Johnny Torrio e Joe Masseria (curiosidade: o primeiro episódio é praticamente um filme dirigido por Martin Scorsese). Não consigo lembrar de alguma cena específica, mas foram as várias viagens feitas naqueles carangos pretos com suas rodonas e pequenas cabines que cristalizaram essa ideia de uma morte à beira da estrada testemunhada sem querer por uma criança inocente no banco traseiro. Pensei em como seria interessante narrar algo tão violento pelos olhos do garoto que acorda, sonolento, vai fazer xixi e logo volta a dormir.”
#2 – A chegada do cachimbo encerado (FF #428)
“Outra imagem, mas essa aqui do livraço Noite Dentro da Noite, de Joca Reiners Terron. O protagonista, nesse momento do romance apenas um garoto, vê o tio, que praticamente desconhece, na varanda de casa. Foi uma passagem que me marcou bastante, e aqui quis explorar a história de um desconhecido que chega com a pior notícia possível para dar ao sobrinho. A carga desse drop é tão grande que eu me emocionei além da conta escrevendo e me emociono sempre que releio (e já recebi notícia de leitores que se sentiram do mesmo jeito). Isso mostra, como diz o Alan Moore, que uma obra de arte só pode provocar emoção no público na mesma medida em que provoca no criador.”
#1 – Do tempo que resta (FF #448)
“Este drop, escrito especialmente pra figurar na lista de ficções relâmpago da Revista Mafagafo no meio de 2018, foi publicado em novembro (mais infos no fim do próprio drop) e republicado aqui como último do ano. Não há, em nível consciente, uma inspiração particular para essa história. Lembro de sentar e visualizar um pirata velho, todo tosco e detonado, à frente do seu navio enquanto avançava pelo mar. A história foi brotando conforme eu escrevia. No retorno para a cabina, uma cativa, sem dúvida com qualidades mágicas, resgatada de uma ilha misteriosa. E aí um feitiço, a chegada à sua própria ilha de origem e a troca com a sua mãe, uma bruxa poderosa, por justamente aquilo que ele já não possuía na imagem inicial que delineou o conto. Nas releituras, achei que foi um acerto o aparo da linguagem e as transições de narração para diálogo, sem contar o final, que encontra um senso de finitude que encapsula o conto de forma poética. É um típico universo que parece não se conter nas menos de 1.000 palavras que o emolduram, e essa sensação de supressão de um universo é uma das coisas mais ricas que se pode construir sem construir na ficção breve.”