A chegada do cachimbo encerado

Estranhei que não tinha nada na mesa. Nem café, nem pão, nem o pote de manteiga. A mãe costumava acordar cedo, comer sozinha e deixar tudo ali pronto. Quando eu acordava pra escola, Piozinho continuava dormindo, ele só ia pra escola no outro ano. Então eu passava no quarto deles, onde papai ficava deitado, há meses assim, e beijava ele no rosto antes de sentar pra comer. Minha mãe embrulhava um sanduíche pro recreio e ficava da janela da cozinha me olhando sair pelo portão, pela rua.

O quarto deles tava vazio. O berço de Piozinho no canto da sala também. Se ouvia um barulho na casa, um nhéc nhéc que só podia ser da cadeira de balanço na varanda. Fui lá, tirando as remelas dos olhos. Da porta já dava pra ver a luz grudando no mato e nas árvores, começando a secar o sereno que deixava as madeiras da cerca da varanda lambidas.

Na cadeira um homem. Ele era mais velho que meu pai e em nada lembrava ele, com costeletas grisalhas que vinham até bem perto da boca, e dela se estendia um cachimbo curvado, brilhante de cera, e a fumaça era bem fraquinha, quase não se via. Eu só tinha visto cachimbo uma vez antes, na sala do diretor do colégio quando minha mãe foi lá conversar sobre os meus horários. E agora ali, na boca daquele homem, que balançava a cadeira como se fosse sua, a barriga assentada como se dali não fosse se erguer nunca mais.

Bom dia, João. Sua mãe pediu pra eu cuidar de você enquanto ela não volta.

Bom dia, senhor.

Eu quis me virar pra voltar pra dentro, mas a curiosidade não deixava.

Quem é o senhor?

Sou seu tio Matias, rapaz. Irmão da sua mãe. Você ainda não me conhece, mas eu te segurei no colo e dei banho, sim, senhor, quando ainda era do tamanho dessa mão aqui.

A mão dele era enorme, mas mesmo assim pequena pra um bebê. Eu já tinha ouvido falar dos irmãos da minha mãe. Eram quatro, Matias o mais novo. E eles moravam bem longe. Trabalhavam muito. Tinham suas famílias, suas vidas. Nunca visitavam.

Onde tá a minha mãe? O meu pai?

Eles foram pra cidade. Levaram o Piozinho, ainda é muito pequeno, não dá de deixar muito tempo longe da mãe. João, venha cá.

O homem apontava com a bunda do cachimbo o espaço à sua frente na varanda, entre as pernas e a cerca. Fui até lá e olhei ele de frente, nos olhos amarelentos dele. Ele tragou do cachimbo, sugando as bochechas e dando quatro chupadas consecutivas de bico, soltando a fumaça enquanto falava.

O teu pai, João. Ele ficou muito ruim ontem à noite. Sua mãe esperou eu chegar e levou ele no meu carro pro hospital. Ele não vai voltar. Entendeu? Ele chegou num ponto em que não tem mais por que lutar. É muita dor, é só a dor. Tem uma hora que um homem perde a sanidade, a sensibilidade, não diz coisa com coisa, vira um bicho, e ninguém queria ver teu pai assim, muito menos ele. Antes de ir, pediu pra eu te dizer que te ama muito e quer que você cresça forte e obediente pra sua mãe. Entendeu? Me responde.

Sim, tio Matias.

Ele ergueu a mão direita caída no colo e jogou meu cabelo pra trás, olhando minha boca, meu nariz, meus olhos.

Você tem o rosto dos Figueiredo, rapaz. Os Figueiredo são trabalhadores. Você vai ser também. Eu vou ficar aqui algum tempo. Você sabe trabalhar com madeira? Não? Vai aprender. Sou marceneiro. Um dos meus filhos é meu ajudante. Até ele chegar, você vai me ajudar, combinado?

Sim, senhor. Eu preciso me arrumar pra escola?

Hoje, não. Se quiser, pode ficar em casa. Sabe fazer café? Então coa um pra gente. Deixei um bolo de milho no forno. Coloca na mesa e me chama quando tiver tudo pronto.

Sim, senhor.

Dentro de casa, entrei no quarto dos meus pais. O cheiro de suor do lençol tava forte. Na cômoda o relógio dele, aberto. Coloquei no pulso. Ficou bem largo. Não abri as gavetas. Alguns papéis higiênicos amassados ao pé da cama. Fui até a janela, abri as cortinas, as madeiras. A luz entrou ali pela primeira vez em muito tempo.

Na cozinha, esquentei a água pro café. Abri o forno. O bolo de milho era pronto, de padaria, tio Matias trouxe junto na viagem. Minha mãe tinha falado que era meu preferido? Servi a mesa. Antes de chamar ele, sentei no lugar de papai, na ponta, há tanto tempo vazio, fechei os olhos e pensei nele ali, brincando de enfiar três broas na boca ao mesmo tempo e minha mãe brigando. Minha mãe tava grávida. Ela levantava sem jeito pra dar umas bordoadas de brincadeira na cabeça dele. O farelo escorria pelo queixo, pelas bochechas. Eu ria um monte. Eu ria agora. Meu pai me abraçou. Eu continuei de olhos fechados, ainda rindo, porque não queria abrir os olhos e ver que era meu tio, que eu não conhecia, ali, com os braços em volta de mim, e mesmo o cheiro de cachimbo não incomodava, porque ninguém fumava cachimbo na nossa casa, e eu ria, ria que me acabava.