Junção exoesquelética da ferrovia

Cerpin ainda sentia a morfina correndo no sangue. Lembrava de mastigar bolinhas pretas e de buscar refúgio nas páginas de um livro.

Empurrou a tampa do cockpit, amebas gigantes pulsando em toda a extensão, expurgando o ar venenoso da viagem. As aranhas se desentrelaçaram, desfazendo a camada do assento, afundando-o na estrutura óssea, vértebra primordial que o acolhera. Sentiu algo escalando a garganta. As formigas se enfileiraram sobre a língua e saíram, pinicando os resquícios do fluido que escorrera da boca nos baques inesperados. Por fim as larvas enganchadas ao redor da espinha, responsáveis pela casca que o mantinha ajustado sobre as aranhas, aos poucos desencravaram e escorreram pelas reentrâncias da nave. Cerpin segurou no pilar central de osso e se puxou pra fora. Rolou pela terra e bebeu o ar enquanto o sol o curava da viagem improvável pelo tempo e pelo espaço.

Levantou e andou, imerso numa bacia de óleo ou graxa ou gordura. Culpou a morfina. Viu vagões de trem enferrujados rodeando um acampamento, barris de latão aninhando fogueiras, a luz contornando rostos que aqueciam mãos. Cerpin ignorou todos eles e andou até o vagão mais próximo. Um abajur de bambu discernia o interior, no canto um colchão abarrotado e vago. Perguntou ao mendigo mais próximo se podia deitar e não esperou resposta.

“Três córneas, dois pés, pele séptica, barbante pomposo”, cantarolava o mendigo.

Com a chegada da noite Cerpin pressentiu a sombra. Ela se arrastava pelo deserto e encontrou o acampamento e rodeou as pernas dos mendigos que se coçavam e bebeu angústias como quem bebe gim e dourou sua metapele nos fogos e sentiu o pulsar estrangeiro naquele vagão e correu com milhares de patas ectoplásmicas pela terra e sua aproximação berrava morte e sangue e se prendeu no ferro e escalou o caixote até a bocarra aberta e sentiu as respirações pausadas dos homens apagados e pulsou. Cerpin se viu afogando numa poça de água escura, as paredes dobrando e lançando estilhaços que perfuravam seu corpo, decapitado e plantado numa ilha com árvores nascendo do chão que era o pescoço. A sombra exalou e inspirou. Cerpin se encolheu instintivamente e o mendigo ao seu lado acendeu o abajur. A sombra deslizou pra fora e rabeou pelo deserto atrás de outra presa.

Acordou ouvindo o mendigo choramingar. Cerpin ainda sentia os próprios tremores. Onde dormi?, pensava, vendo o dia fatiar o vagão. Deixou o colchão embolorado, o lençol furado, se esquivou das poças de mijo e saiu. O efeito da morfina acabara, ou parecia ter acabado. Sabia que algo o ameaçara à noite, em sonho ou não. Podia ver gravada no lençol que cobria as vistas as inscrições “Tremula Metacarpi”.

Fugia, fugia dos tremulantes. Fugia sem saber o motivo, sem saber pra onde. Fugia.


Este drop é o segundo de uma série do Flash Fiction inspirada no álbum de estreia da banda de rock progressivo The Mars Volta, De-Loused in the Comatorium (2003). A sonoridade, as letras enigmáticas e o próprio conto escrito por Cedric Bixler-Zavala e Jeremy Michael Ward, que foi o ponto de partida conceitual da banda, formam a base referencial deste mini-projeto.

Leia os outros drops da série Despiolhado no Comatório:
1 – Percepção extra-sensorial inerciática
3 – A embriaguez dos faróis
4 – Eriatarka
5 – Cicatriz
6 – Este aparato precisa ser desenterrado
7 – Televadores ex machina