Percepção extra-sensorial inerciática

Nasceu, corre duro. Não pensa, só vai. Cê tá na poça, pronto pra virar gente, mas ainda não é nada. Depois que ele te molda dá pra correr, antes disso nem perna cê tem. Tem que ser rápido. É na piscada, nessa piscada, quando ele lembra de um detalhe ou outro que não tem nada a ver contigo. Corre.

Pula essa linha, meu velho, mais essa. Surfa. Surfa nessa letra gorda. Vai. O parágrafo de cenário é denso pra caramba, cê vara pelo meio dos adjetivos mais longos e fica mocozadinho. Ninguém te ouve, te vê. Respira, brisa na tinta. Se cobre de retalho, cara. Colinha de rato, balançando na quina da parede. Pensa um pouco que cê saca as manhas dele. Os nomes. Só nomes comuns. João, Maria, Ronaldo, Daniela. Pensa em algo como Fastiosprota. Frita a frequência, tá vendo? Ó lá. Tá longe, longe. Cê nem importa mais. Corre.

Cuidado nos diálogos. Muito espaço em branco. Não dá na cara. Esfarela, só com muito implante cê volta a ser o que ele queria, essa moldura desconjuntada te dá um alívio, é o único jeito, mermão. Ouviu? É ele. Foda-se o que cê tentou fazer. Ele precisa de você agora. É. Vem sempre o cheiro antes. Tá sentindo, né? Caraca, tão vindo. Ele manda o que tiver de prontidão, esperando. Os leprosos, caralho, eles se arrastam de um jeito medonho. As bonecas com os olhos carnudos. Tá vendo a sombra ali atrás, sim, a sombra barbuda. É, babando. Babando palavras. Ele nunca foi bom com metáfora, porra. Esquiva. Aqui. Ali. Os lobos uivando. Esfarela. Esfarela.

Cê tá quase no fim. Quase. Corre, corre. Esquiva das vírgulas e pontos, porra, pregam na roupa e não te largam mais. Tá chegando. 96. Tá vendo? É o número no final, onde cê se agarra. Dali pro corte das folhas e pra beirada da contracapa e cê tá livre. Vai. Corre. Puta merda, tudo vermelho? Ah, não, não me fala que o pescoço tá pinicando. Ele te achou. Porra. Não deu. É, senta aí. Não tem o que fazer.

São os braços dele. Calma. Cê não é o primeiro, não vai ser o último. Sim, canos, é a tubulação disso aqui, atirando pra todos os lados. Ele controla tudo. Não é uma democracia, mermão. O pior é que uma vez que cê tiver pregado, sufocando dentro de um substantivo próprio, num turbilhão de pronomes e adjetivos, sem espaço pra sonhar que já te falei que metáfora não é bem o forte dele, cê não vai lembrar de nada. É foda, é foda. Nunca vai saber. Não vai lembrar disso aqui, de nada. Não se culpa, mermão. Quem sabe no fim é melhor cê tá aqui do que tá lá fora. E tem outra, nesse mar não se sabe de ninguém que venceu a correnteza, ninguém sabe o que tem do outro lado.

Não adianta se remoer, meu velho. Vida que segue. Olha a porra da página virando. 97, mermão. Aqui cê entra. Vai. Mergulha.


Este drop é o primeiro de uma série do Flash Fiction inspirada no álbum de estreia da banda de rock progressivo The Mars Volta, De-Loused in the Comatorium (2003). A sonoridade, as letras enigmáticas e o próprio conto escrito por Cedric Bixler-Zavala e Jeremy Michael Ward, que foi o ponto de partida conceitual da banda, formam a base referencial deste mini-projeto.

Leia os outros drops da série Despiolhado no Comatório:
2 – Junção exoesquelética da ferrovia
3 – A embriaguez dos faróis
4 – Eriatarka
5 – Cicatriz
6 – Este aparato precisa ser desenterrado
7 – Televadores ex machina

  • Jean Moncle

    Pirei