20 centavos [#53]

- Pai, eu quero segurar um cartaz também.
- Você ainda é muito pequeno, filho. Ninguém vai conseguir ver.
- Que tá escrito no seu?
- “Desculpe a inconveniência, estamos tentando mudar o Brasil”.
- O que é incovenença?
- Inconveniência. É alguma coisa que te atrapalha. Tem gente que acha que tamos atrapalhando aqui, que somos um bando de desocupados.
- Mas a gente tá atrapalhando a rua, não tá, pai?
- Tá. Mas isso é pra chamar a atenção, filho. É por uma boa causa, por isso o cartaz. Todo mundo devia tá aqui.
- Mas a gente nem anda de ônibus.
- Não é só pelo ônibus. E a gente devia andar, seria o certo pra poluir e gastar menos, mas do jeito que tá é complicado.
- O Joquinha disse que isso é coisa de juventude tranfiada, acho que foi isso que ele disse, que quem não tem esses vinte centavos a mais do ônibus tem que trabalhar pra conseguir e a vida é assim mesmo, o preço de tudo sobe.
- Quem é o Joquinha?
- Da minha sala.
- Coitados dos pais dele.
- Por quê?
- Nada, filho. Não presta atenção no que ele disse. A gente não tá aqui só por causa dos vinte centavos. Essa foi só a cereja do bolo. Imagina um copo d’água cheio até a boca. Aí você vai e coloca uma gotinha a mais. Vai derramar, mas não é por causa da gota que você colocou por último, é por causa de toda a água que você colocou antes.
- Quem jogou água nos ônibus?
- Não filho, isso foi uma metáfora.
- Ahn.
- Pensa assim: a gente não tá aqui por causa dos ônibus. A gente tá aqui porque temos que morar em prédio, por segurança. Temos que pagar seguro de saúde pra não depender só do SUS, andar de carro porque transporte público tá complicado, pagar imposto pra caramba e andar em rua esburacada, ver que o dinheiro some no ralo e a politicagem engorda os bolsos e a gente fica nas promessas e tudo fica bonito nas eleições. Tá entendendo, filho? É muito mais coisa do que parece.
- Mas pai, se a gente consegue pagar tudo isso a gente não depende assim do governo, né? O que tamos fazendo aqui?
- Agora felizmente sim. Mas esse é o jeito errado de pensar. Pagamos imposto pra isso, pro governo cuidar da gente, pra investir e dar retorno. Não temos que ganhar a mais pra contornar esses problemas que não deviam existir. E quem sabe amanhã? Se eu não puder trabalhar? Nem a sua mãe? Temos que melhorar. Tem muita gente ignorante que tá sujeita a tudo isso e nem sabe, não tem ideia de que pode exigir mudança, que pode fazer diferença. Quem tem consciência é que tem que correr atrás, avisar, abrir os olhos. Não podemos pensar só na nossa família, temos que pensar em todos, no país, no mundo que vamos deixar pro futuro, pro dia que você tiver um filho.
- Acho que não vou ter filho, pai.
- Por que não?
- Tem que explicar muita coisa. Não tenho essa paciência que você tem.
- Vamos ver. Acho que você vai mudar de ideia.
- Se eu tiver não vai ser em São Paulo.
- Por quê?
- Lá o ônibus tá caro.
- Haha. Tá bom, filho.
- E outra, pai. Se eu tiver um filho vou deixar ele segurar o cartaz.
- Você é atentado, né moleque. Tá bom, sobe aqui no ombro.