A arma [#180]

  • 1 de julho de 2014
  • Categoria: Fantasia

Carlinhos ganhou a arma.

Na verdade não ganhou. Ela escorreu dos poros das axilas, um suor pesado e geleioso que desceu enquanto tomava um chope no Seu Maneco e germinou no bolso da calça, um bio resíduo que se ajustou e adquiriu num papo telepático os contornos que o dono queria.

Não deu pra sacar muita coisa, eu sei. Nada que faça sentido. É difícil entender como as regras desse novo mundo se adequam às do mundo antigo, o mundo em que você vive. Não é só a passagem pelo espelho que diferencia o estado de pensamento, não é apenas um deslocamento físico, e sim uma tomada de consciência.

O Carlinhos chegou aqui faz tempo e sabe o que tá rolando. Sabe que a geleia é comum. O que não é comum é a arma. Essa tomada de consciência que eu citei apaga as tendências agressivas da pessoa. É uma purificação, o motivo de todo mundo sorrir sem parar por aqui e sair à noite sem receio e dormir de porta aberta e comprar coisas sem ter medo que sejam roubadas. Só que às vezes aparece um sujeito desses e consegue burlar as nossas leis, um vírus inesperado.

Quem dedurou Carlinhos foi o Seu Maneco, que viu ele sacar a arma, engatilhar, apontar pra sua cara e dizer aqui eu não pago mais nada vê mais um chope aliás dois aliás vê uma rodada pra todo mundo que tá aqui e vai agora ou abro fogo e nada do que você levou a vida inteira pra construir vai valer a pena porque só vai sobrar pedaço.

Seu Maneco foi, serviu os chopes, serviu de novo e de novo e de novo e sentou aliviado quando Carlinhos caiu trêbado na mesa, a arma escapulindo pelos dedos. Ele chamou a polícia e disse que a arma desagregou, escafedeu, virou geleia de novo e escorreu pela valeta da rua. A polícia prendeu Carlinhos e acreditou, claro, ninguém tinha motivo pra mentir. Mas Seu Maneco mentiu, escondeu a arma debaixo do balcão. O dono do boteco foi contaminado pelo escorregadio vírus-Carlinhos e já não confiava mais tanto assim nos outros. Se sentia bem mais seguro com a arma. Só queria defender o que era seu, oras.

A arma de Carlinhos desapareceu depois de algumas semanas. Mas a essa altura Seu Maneco já utilizara sua própria geleia para produzir todo um galpão de escopetas, pistolas, metralhadoras e lança-mísseis. Transformou o depósito numa galeria de tiro ao alvo, onde ele e os outros donos de boteco se prepararam para cuidar do que era deles. Mas a polícia chegou pro Seu Maneco também. E quem dedurou ele foi o Seu Matias, que percebeu que além de ter o boteco menos movimentado era o pior atirador do grupo. O vírus-Carlinhos se espalhava e ganhava novas formas. Inveja era a mais previsível delas.