A cidade e os símbolos

Aberá se esconde do mundo na simplicidade de suas linhas. Quando o viajante adentra a floresta e segue por qualquer trilha, corta a cidade como um facão afiado decepa um pescoço.

Atravessa as ruas, segue pelas casas e vendas e igrejas, pisa nos jardins, chuta os piões e as bolas das crianças, cheira as panelas de galinhada e feijão preto, sente a brisa da esquina em que há muito um moribundo soprou e sai do outro lado.

No entanto o viajante pode tropeçar ou notar a mudança nas nuvens, que de Aberá são sempre mais brancas, e se ver numa cidade ambígua. Sempre que um estranho aporta nas percepções citadinas, os habitantes, tão confundidos com a floresta que adquiriram tons amadeirados, o abordam com presteza.

Dentro das habitações sem paredes é possível ver as pessoas sentadas escrevendo em lousas com gizes que guincham. Elas escrevem o que são. Nunca chegam ao fim pois percebem que aquilo que escrevem é o que foram. Cansadas, se entregam a rotinas entorpecidas, buscando algo que não encontram.

O viajante se sente tentado a entrar em sua habitação, que sempre esteve ali, e pegar o giz e riscar algo, e logo descobrir que décadas não são suficientes para traduzir aquilo que pretende traduzir em palavras. Diante da revelação ele pode se dedicar à manufatura de placas e pendurá-las nas teias de caranguejeiras e erguer suas próprias paredes. Mas aprende, como os habitantes aprenderam, que o vento apaga as inscrições e o tempo as derruba e o solo as come e tudo aquilo que ele foi não importa e talvez nunca tenha importado.

O que sucede é, inevitavelmente, o anseio por novas viagens. No entanto o retorno à trilha para deixar a floresta que abriga Aberá é difícil, pois o viajante não vê mais trilhas, vê apenas as ruas, as casas e vendas e igrejas, os jardins, os piões e as bolas das crianças, não sente mais o cheiro do mar e das especiarias que há muito apodreceram em seus alforjes, apenas o das panelas de galinhada e feijão preto, e não sente mais a brisa refrescante, apenas o sopro que ele mesmo, definhando, sopra.

É possível que em algum momento desta procura pela saída o viajante tropece ou olhe para cima e repare nas nuvens, tão brancas que lembram enormes rabiscos de giz moldados pelo vento. Talvez não seja coincidência que em Aberá só bebam água da chuva.


Este miniconto é o terceiro de uma série do Flash Fiction que presta homenagem ao belíssimo livro As Cidades Invisíveis (1972), de Italo Calvino. Conheça os outros:
1 – A cidade e a memória
2 – A cidade e o desejo