A morte do Toupeira
Terra na pá, de lado, um montinho, dois, três, quatro, cinco.
Aqui nos fundos a terra é fofa. É fácil de mexer. É fácil com esses braços grossos e duros que cê consegue depois de onze anos carregando pedra de um lado pro outro. Eu tive que ficar com o braço grosso. Pra pelo menos parecer forte. Porque eu não sou forte. O Eduardo era forte. E magro. Tinha 47 quilos, um metro e oitenta. Só que ele estalava o dedo e a casa tremia, batia na porta e não sobrava nada, amassava o lixo da semana numa bolinha de gude.
Entro na casa e tomo água. Não cansei, mas suei pra burro debaixo desse sol filho da puta. A gente nunca se preocupou com água. A Verônica fazia surgir água na palma da mão. Puxava a água que tem em pedacinhos no ar que a gente respira, me explicou uma vez. Era uma água ruim pra cacete, salgada, com gosto de poço velho. Ela dizia que eu transpirava tanto que com a minha água dava pra fazer uma piscina aqui atrás. Mas não vai dar porque agora tamos usando os fundos pra outra coisa. Pra fazer o enterro.
Pego os sacos na sala. Tão leves. Bem leves. Tropeço em algo no caminho, algo grande. É o meu pai. Levo ele lá pra trás. Meu pai sempre disse que uma hora meu poder ia aparecer. Mas quando comecei a ficar careca ele desistiu. Um dia arrancou o tampão do dedo e me deu pra comer. Disse que às vezes meu corpo precisava de incentivo. Eu comi a ponta do dedo do meu pai mas não adiantou, nunca fiquei invisível, nunca salvei ninguém nem desarmei bomba nem prendi bandido.
Jogo os sacos na cova. Olho pra minha mãe. Atravessava parede, teto, carro, qualquer coisa. Imagina você moleque vendo revista de mulher pelada e tua mãe sai da parede e fala bonito, ein, safado. Minha infância foi um inferno. Mas ela foi a única que não achou ruim eu não desenvolver nenhum poder. Acho que como ela sempre atravessava a cama e acordava no chão, conseguia entender que ter poder nem sempre é bom. Só que quando fui trabalhar no açougue ela ficou brava, disse que ninguém na família podia se rebaixar tanto. Eu disse que então não era da família, peguei as coisas e fui embora.
Depois de muito tempo, quando a vida tá nos eixos, venho visitar e encontro a casa em pedaços. Todo mundo queimado, morto, esmigalhado. Lá no meio, rindo de tudo, o Toupeira. Nessa hora não precisei de poder. Catei um facão na cozinha, peguei ele pelo pescoço, joguei no chão e abri que nem a gente abre porco no serviço, antes que conseguisse falar as asneiras mágicas que me transformariam num suflê de queijo. O desgraçado tava dando o troco, porque minha família prendeu ele há muito tempo, e foi só fugir pra se lambuzar de vingança. Separei tudo em sacos pra enterrar nos fundos da casa.
Vim do açougue com uma picanha de dar água na boca. Fazer um churrasco pra todo mundo, dizer que depois que eu desisti de esperar, meu poder apareceu. Depois de 53 anos. Observo os quatro corpos sentados nas cadeiras de plástico, a picanha estalando no fogo, abro uma cerveja e toco cada um deles na testa. Minha mãe, meu pai, Eduardo e Verônica me olham. Oi, família, aquele ali é o Toupeira, que acabou de matar vocês. E eu voltei pra casa. Descobri meu poder. Ressuscito os mortos.