A ordem das fatalidades pneumáticas [#160]

Nossa Ordem é meticulosa. Dos inscritos, uma média de 8% é aprovada na bateria de exames. Desses, 5,4% estão aptos a concorrer a alguma vaga de comando. Desses, 0% chega ao cargo máximo. A diretriz precede a própria Ordem: o grande mestre sempre é, sempre foi e sempre será o que muitos tomam como um ser onisciente, onipotente e onipresente, embora não passe de um cálculo impiedoso.

O termo técnico é “assassinos das câmaras pressurizadas veiculares”. Refutamos o termo popular “estouradores de pneu”, pois a simplificação nos reduz a arruaceiros descontrolados, servos de males aleatórios, quando na verdade somos treinados para agir em concordância com o destino, para operar neste mapa complexo colocado sobre ruas e rodovias e estradas e trilhas e pontes e florestas; onde quer que veículos veiculem. E somos preparados para “estourar o pneu”, como se fosse assim fácil, nos momentos mais propícios, de acordo com as leis cármicas de todos os envolvidos, do motorista ao carona aos eventuais azarados atravancados num congestionamento, ao ciclista que desvia pela calçada, ao pedestre que assiste o pobre coitado tirando estepe e chave de roda e triângulo do porta-malas e agradece por não estar na sua pele.

Nossa atuação consiste em navegar pelas vias transitáveis aproveitando nossas vantagens corpóreas: somos maleáveis, invisíveis e translúcidos; manipulamos a atração gravitacional; nosso movimento é tão fluido quanto o ar; sensores biológicos nos direcionam de uma tarefa a outra.

A Ordem é vinculada ao Ministério do Asfalto, ao Ministério das Ruas de Terra, ao Ministério dos Viadutos, Túneis e Pontes, ao Ministério das Balsas, ao Ministério das Vagas de Garagem e ao Ministério das Calçadas. Embora a burocracia seja críptica e assustadora, somos a organização extra-humana que mais acumula prêmios e atestados de eficiência na história catalogada, resultado conjunto de nossa preparadíssima equipe administrativa e dos agentes de campo.

Este depoimento foi originalmente concebido como propaganda para contratação de novo efetivo, uma vez que o número de câmaras pressurizadas no planeta só aumenta, mas um memorando do supervisor nos autorizou a escolher entre publicar o edital ou aumentar a atual carga de trabalho. Ficamos com a segunda opção, afinal, somos apaixonados pelo que fazemos. O índice de desistência no meio é 0%. O de insatisfação também é 0%. Os psicólogos do departamento de RH emitiram seu parecer há alguns dias: somos obcecados. Curta vida aos pneus.