Amanhã

Marcos abrirá os olhos tremendo, a garganta estourada feito parafuso em porca frouxa, voz de motor de fusca. Amaldiçoará o alarme que o enxota do conforto do colchão duro. Descoberto, a proteção perdida nas reviravoltas do sono, exposto ao que a janela entreaberta oferece. Ao lado a esposa adormecida, recém-chegada do trabalho.

Pisará no chão de cimento, alcançará a lâmpada dependurada no fio e a rosqueará. Enxergará a sacola com pão que ela sempre traz, na pia o café que prepara antes de dormir. Alcançará das raquíticas prateleiras da geladeira o pote de margarina.

Observará a esposa enquanto se troca para o trabalho, o cabelo desgrenhado esparramado no travesseiro, um sorriso de descanso merecido no rosto. O salário de faxineira de shopping não é dos melhores, sabe que o horário de coruja acabará com ela. Destrancará a porta, sairá para o frio da manhã, a escuridão prenhe do sol, o sereno notado apenas nas esferas irradiadas pelas lâmpadas dos postes. Descerá o morro, serpenteando pelas ruelas sujas, passando por casinhas como a sua, as vendas ainda fechadas, cortinas de ferro presas ao chão por enormes cadeados.

Desembocará na grande avenida de seis pistas. Quando chegar, outras pessoas já estarão à espera de uma brecha na correnteza incessante para disparar pelo asfalto e chegar ao ponto de ônibus do outro lado. Dentro da baleia de alumínio, espremerá e será espremido, lutando para chegar ao cobrador e à porta traseira, a massa de corpos agregada como um quebra-cabeça dançando involuntariamente. A viagem será longa e cansativa até o segundo ônibus no terminal, esse, talvez, menos lotado.

Chegará no armazém e encontrará os outros dois ajudantes. Pulará na caçamba do caminhão, sentará na lateral de madeira puída e marcada pelas cordas, apoiará o braço na placa pintada a dedo “ALUGA-SE/FRETE” e será novamente embalado por rodas de borracha. Duas mudanças residenciais tomarão a manhã. Pouco depois do meio-dia, o patrão estacionará nos arredores do restaurante de dona Marieta, onde os quatro se empanturrarão com uma boa dose de arroz, feijão, bife e farofa. Deitados sob a sombra das árvores nos fundos, recuperarão as forças por alguns minutos e voltarão a escalar a caçamba. A tarde será dedicada ao carregamento dos entulhos de uma loja para um depósito.

Terminado o serviço, Marcos voltará ao armazém, onde encherá a barriga de água da torneira e lavará o rosto melado de suor. O ritual precederá a melhor parte do dia. Receberá pouco, mas suficiente. Gastará parte da cota entornando uma cerveja no boteco com os companheiros enquanto o suor da roupa seca. Então, tão lenta quanto a ida, virá a volta. Fará uma parada rápida no mercadinho para comprar uma Coca 1 litro. Em casa encontrará a esposa acordada, a janta pronta e quente na mesa. Cheirará seu cabelo, beijará sua nuca e tomará um banho rápido.

À mesa, matará a fome e trocará uma ou outra palavra. Arroz, ovo e ossobuco. Observará ela assistir o jornal enquanto lava a louça e sentirá uma pontada súbita de desejo, transformada no uso rápido da cama barulhenta para não perder o início da novela. Desfrutarão do momento de maior intimidade diante da TV. No fim ela se arrumará para o trabalho enquanto Marcos encherá a cumbuca de plástico com os restos da janta para o lanche.

Sozinho, Marcos devolverá o casco de vidro no mercadinho e flertará com a caixa antes de voltar para a TV. Em pouco tempo será vencido pelo cansaço, que o despachará relutante para a cama. Ali, ouvindo os sons da rua pela janela entreaberta, refletirá sobre os problemas dos personagens da novela, que sempre se resolvem no capítulo seguinte, e fechará os olhos. Já no fim do sono, o barulho da mulher chegando e o cheiro do café não terão, nem de longe, o efeito devastador, porém útil e cronometrado, do amaldiçoado alarme.