Bom de papo [#221]

- E aí, Cardoso. É hoje que vai me contar?
- Contar o quê, homem?
- Por que tá morando na rua. Sei que tua filha tem casa, cê que não quer ir.
- A pergunta é: tem cerveja envolvida?
- Claro, puxa aí. Amizade, vê mais um copo pro Cardoso aqui.
- Brigado.
- Então. Conta, tô curioso.
- Calma. Deixa ele trazer. Tô com a boca seca, essa umidade baixa mata a gente. Aí. Brigado, filho. Tintin.
- A quê?
- Aos que se foram, né? É um bom brinde.
- Aos que se foram.
- Êta coisa boa, Tavares. Brigado, viu?
- Nada. Agora anda, conta.
- Tá bom. Não tem muito mistério não. Quando eu tava na faculdade tive um professor de filosofia que falava umas coisas bonitas, fazia a gente pensar. Um dia disse que queria morar na rua pra conhecer de perto como é que funciona a cidade. A alma dela tá na rua, entende? Se bem que ele não chegou a fazer isso, se aposentou e mudou pra Campo Verde, tinha família lá. Acho que tá vivo ainda.
- E aí?
- E aí que isso mostra uma coisa bem simples. Tem muita gente que diz que vai fazer as coisas. Pouca gente faz. Agora, cê vê, eu sempre disse que ia ouvir o médico. Me receitou uns remédios, pressão baixa. Não posso ficar muito tempo sem comer, passo mal. Tô até vendo escuro nos cantos, sabe? Igual cinema antigo?
- Pedi um frango a passarinho. Já deve tá chegando.
- Olha, que beleza. Vai ser uma mão na roda. Ah, cerveja boa. Aqui, deixa eu encher. Tive um sobrinho que trabalhou na Ambev. Ele dizia que as melhores cervejas eram as que vendiam menos. Tinham tempo de fermentar mais, ficar de molho. Essas da moda têm que produzir rápido, não dá de curtir, ficam meio aguadas. Qual é essa aqui mesmo?
- Brahma.
- Brahma. Ô coisa boa. Boa mesmo. É, cabou.
- Amizade, vê outra aqui. Brigado.
- Bom esse bar, né?
- Bom mesmo. E a tua história, Cardoso?
- Então. Depois desse professor eu tive um amigo que ficou dedéu quando perdeu o filho, morou embaixo da ponte. Buscamos, levamos pra casa, demos banho e tudo, mas ele queria voltar. Dizia que tinha descoberto a verdade. Que as coisas tavam ali, expostas, e ele se sentia mais vivo que nunca. Mas tava pirado, era fácil ver. A ideia era fazer o que ele fez, mas são, sabe?
- E aí cê resolveu?
- Não, passou um tempão, eu trabalhei na Sadia. Era um fedor danado, acho que isso meio que transmutou meu cérebro. Mas a gente se acostuma. Falando em animal morto, olha aí.
- Opa. Valeu, amizade. Tem um limão? Beleza. Pimenta também. Tranquilo.
- Hum. Que coisa boa. Crocante a pelinha, né?
- Mas então.
- Então, a gente estudava isso na Sadia. Pra fazer os pacotes de frango a passarinho. Tem que cortar certo. Pessoal faz essa propaganda apocalíptica do colesterol no couro, mas quem gosta dele frito não liga, tem que ser crocante mesmo.
- E a história, Cardoso?
- Já conto, deixa só o sal entrar no organismo. Hum, coisa boa.
- Boa mesmo.
- Pronto, esses cinco pedaços tão começando a aliviar. Dá uma sede, né?
- E?
- E aí que fui despedido da Sadia, acabou o dinheiro e fui morar na rua. A saideira?