Canastra de domingo

Minha vó olha pra mim. Os braços abertos, camiseta florida de tecido liso que eu lembro ser sempre frio ao toque. As unhas pintadas de vermelho. Um colar dourado com um pingente de coração, nas costas as iniciais dos filhos e dos netos, uma fileira de letras que dizia qualquer coisa em qualquer língua.

Foi um almoço de domingo na casa dela, daqueles em que fazia frango assado recheado com farofa. E pela claridade, pela mesa desarrumada no fundo, a foto foi tirada no meio da tarde, quando o vô tava dormindo no quarto, minha irmã e meus pais vendo TV na sala. A gente tava, eu acho, jogando canastra na mesa da cozinha, ou dominó. Enquadrei ela, daquelas fotos bobas. Os lábios espremidos, prestes a dizer alguma coisa: foi o momento que a câmera fisgou, o momento que me trouxe aqui, na loja do seu Vanderlei, pra desabrochar.

A loja tem pouco tempo mas a fila de espera é grande. O processo é simples, ele me explica. O programa reconstrói o cenário com a ajuda de outras fotos, se eu tiver (tenho), com a voz da pessoa caso eu tenha registros de áudio (tenho vários vídeos de uma fita de videocassete que virou dvd e depois mp4) e tenta, a partir de comparações com um corpo de vídeos catalogados no youtube (é coisa pra caramba), prever qual foi a ação dos segundos seguintes à imagem. No meu caso, ela concluir o movimento com as mãos e dizer algo.

Entramos na salinha. Seu Vanderlei me dá privacidade. É uma cabine escura com uma poltrona e uma TV alguns metros adiante. A foto da minha vó aparece ali. Então ela se mexe. Fecha os braços, bate uma palma e sua boca se abre. “Vamos, Rico”, ela diz. E eu lembro.

Vamos, Rico. Para de gracinha com essa câmera e vamos terminar o jogo. Ela entra na cozinha, lava as mãos na pia, pega um chocolate de amendoim na geladeira e senta. As cartas tão distribuídas em pilhas, o jogo na metade, ela com muito mais jogo aberto na mesa, sempre teve uma sorte danada com os coringas. Ela joga, eu jogo, ela compra o morto, bate, conta em voz alta e faz as contas no caderninho. Meu avô desce a escadaria, cara amassada. Pega uma cerveja na geladeira. Pergunta se eu quero comprar sorvete com ele depois que acabar o futebol. Passa a mão no meu cabelo.

Seu Vanderlei é um homem profissional. Ele não me olha nos olhos quando passo o cartão, me desobrigando da vergonha da saudade.