Cássia Marina [#49]

Não consegui.

O Arthur tava com aquela barba rala, coisa do dia anterior, mas pedi pra ele tirar. Aí fomos até o fim. Eu tenho esse problema. Foi estranho no início mas expliquei e ele entendeu depois de superar o choque. Meu tio, irmão da minha mãe, costumava visitar bastante quando moramos em Niterói. Eu tinha de 6 pra 7, fiquei lá até os 8. E todo domingo quando meus pais dormiam depois do almoço ele ia pro meu quarto. Falava que era brincadeira, eu dizia que não queria, ele me convencia fácil como se convence criança. Me enchia de presentes e me obrigava a prometer não contar pra ninguém. Ele era barbudo. E agora eu não suporto barba. É a coisa mais repulsiva que pode existir num homem.

Quando fiz 17 contei pra minha mãe. Desde então não nos demos mais. É engraçado, mas parece que ela colocou a culpa em mim. Não me perdoa. Tenho certeza que meu pai me apoiaria se ainda tivesse vivo. Mas minha mãe… O negócio capengou até chegar num ponto irreversível, e ainda bem que na época eu já namorava o Arthur e tinha pra onde fugir. Moramos na casa dos pais dele. Ele diz que é só um sobrado no mesmo terreno, mas eu digo que não; eles entram e saem quando bem entendem, e se a gente não tem privacidade na nossa casa a casa não é nossa. Já decidi que é temporário. Assim que me formar em direito e tiver um emprego mudo pruma quitinete no centro, e se o Arthur quiser vir junto ele vem. Não sei se tá pronto pra esse tipo de compromisso ainda, mas eu vou. Continuo pensando em fazer um curso de teatro, trabalhar na Globo, mas agora tenho que ter o pé no chão. Já tô morando de favor, deixa eu pelo menos começar uma carreira que sei que dá dinheiro.

Espero que o Arthur venha comigo. Amo ele. Mas entendo se ele não me amar tanto assim. Eu tenho esse problema da barba e alguns outros. Por exemplo: procuro ele toda hora. Até quando não quer, mas é fácil convencer os homens. Pode ser aqui no nosso canto, na faculdade, no shopping, no cinema, no carro. Algo parece prestes a explodir dentro de mim, preciso extravasar, preciso sentir. Só penso em sexo. O dia inteiro. Tá começando a ficar difícil. Se eu não fizer isso pelo menos três vezes no dia fico ansiosa, nervosa. De uns tempos pra cá tenho sentido uma atração inexplicável por alguns dos professores. Os mais velhos. O de direito penal, o de ambiental, o de civil. E todos têm um negócio em comum: são casados. Eu sou fiel e quero continuar sendo, mas não sei se consigo resistir a uma cantada de algum deles. Pelo meu bem, espero que isso não aconteça.

Outro problema começou faz pouco tempo. Tenho duas gavetas atulhadas de porcaria. O Arthur ainda não viu. Comecei com essa besteira de pegar as coisas. Coisas pequenas das lojas, coisas que vejo na casa das amigas, coisas dos meus sogros até. Qualquer objeto que caiba no bolso. Não consigo me controlar. Passo a mão e trago pra casa. Quando chego aqui me arrependo. Quase não tem mais espaço. O Arthur é um santo pra continuar comigo. Eu no lugar dele me odiaria. Ele diz que me ama. Eu finjo que acredito. E guardo na gaveta daquilo que roubei e tenho medo de encarar.