Colozimação

O sofá já adquiriu muitos formatos e agora chegou ao último: o da armação crua das madeiras. Só consigo aguentar uns cinco minutos nele, depois disso vou pro chão. O desconforto vale se eu puder ficar na frente da TV, a programação nunca foi tão boa como agora. Por que não vendo o sofá, você me pergunta. Preguiça.

Continuam informando o novo horário do toque de recolher. Daqui a pouco será como nos presídios de segurança máxima, apenas uma hora por dia fora de casa. A segurança já é máxima faz tempo. Com a taxa de crimes zerada era de se imaginar mais liberdade pra andar nas ruas, pra varar a noite na casa dos amigos, porta aberta, janela arreganhada. Mas nada. Por que não faço mais que reclamar que nem uma velha pra parede, você me pergunta. Preguiça.

A marola sobe pela escadaria e entra pelas frestas da porta. Talvez eu seja a única aqui no prédio que não tá fumando esse barato que entregam em qualquer postinho de saúde, a zima. Não é que eu não goste; quem não gosta. Mas me deu um ataque de tosse tão violento na última vez que fumei que fiquei preocupada. Por que não aproveito pra consultar o médico no postinho quando vou pegar a zima, você me pergunta. Preguiça. Mas essa não vai demorar pra resolver. Ficar sem zima é osso.

Da janela a gente vê o pessoal fardado andando de um lado pro outro na rua depois do toque de recolher. Eles fazem buracos fundos no chão, grandes, numa logística ordenada, engenhocas robóticas enormes pra cavar a terra e o asfalto, naves-depósitos pra levar os detritos pra algum aterro fora da cidade, todo mundo com capacete de construção e metralhadoras penduradas nas costas. Por causa do barulho não consigo dormir há semanas. Por que não reclamo, você me pergunta. Preguiça.

Cortam a programação pra mostrar o informe urgente do aniversário da chegada deles. Três anos. Tanto mudou desde então. A zima que trouxeram foi a melhor coisa que já nos aconteceu. No final do informe anunciam a recompensa pela hospitalidade, uma nova versão, que dá barato comendo, não fumando. Um bolinho, disponível pra todo cidadão em qualquer postinho. No postinho, depois de comer, fico à toa olhando pros outros, todo mundo se olhando meio perdido. Por que não volto pra casa, você me pergunta. Preguiça.

Não lembro direito o que aconteceu depois do bolinho. Mas sei que agora todo mundo que tava lá comigo tá aqui, na beira de um buraco. Enfileiradinhos. Olho pros lados, a vista embaçada. Uns riem que nem bobos, outros balançam a cabeça, outros cantam baixinho. Essa nova zima é maneira. Eles tão enfileirados na nossa frente também, segurando as metralhadoras. Coço o olho. Tem alguma coisa estranha aqui. Coço os sete olhos. Nenhum concorda com o outro. Me apoio no chão com o rabo, equilibrando o peso da carapaça. Eles erguem as metralhadoras. Tem alguém falando alto. Eu só quero dormir, ver TV, ficar tranquila na minha. Por que ninguém lutou quando os humanos chegaram? Lutaram, eu lembro. Mas aí distribuíram o primeiro lote de zima. E por que não fizeram mais nada depois disso, você me pergunta. Adivinha.