Como ele andava quando voltava pra casa [#142]

Havia algo de saudoso na forma como ele andava quando voltava pra casa. Era sempre no começo da noite, boina na cabeça pra escapar do sereno, pequeno diante das sombras que os postes jogavam na calçada quebrada cheia de rampas e sacos de lixo. As pontas do casaco chicoteavam o ar e inflavam ao enfiar as mãos nos bolsos, de minuto em minuto, buscando o que não estava ali.

Havia algo de complexo na forma como ele andava quando voltava pra casa. Era um gingado sambístico, um quase tropeço em cada passada esquerda que podia ser confundido com uma irreverente alma brasileira. E era na verdade resultado da perna postiça encaixada num toco de coxa, calçada no sapato pra fazer par com o pé solitário que pisava firme tentando compensar o irmão gêmeo desaparecido.

Havia algo de pitoresco na forma como ele andava quando voltava pra casa. Talvez fosse o sorriso verificado nos dentes consumidos pelo tártaro, impulsionado pelo álcool ainda pregado na língua e se remexendo na barriga velha e mole que a camiseta tampava com algum esforço. Talvez fosse a dança dos braços, que se alongavam e puxavam o ar feito um remador no mar bravo.

Havia algo de assustador na forma como ele andava quando voltava pra casa. Era o que um observador perspicaz logo notava, a aura de ameaça herdada da experiência, do treinamento, alguém que aprendera a atacar e defender e matar se necessário. Era o que mantinha afastados os transeuntes que cruzavam a rua para não cruzar com o sujeito e respiravam fundo ao chegar do outro lado.

Havia algo de melancólico na forma como ele andava quando voltava pra casa. Era o que ninguém via, a explicação para um trejeito bizarro encharcado de arrependimento. Arrependido de sucumbir à ideia de glória do alistamento, de testemunhar a miséria nas trincheiras e nas barracas e no barro rodeado de corpos frios que um dia foram amigos, de acordar no hospital faltando pedaço. Arrependido, buscando nos bolsos a foto do amor de infância que o manteve alerta nos dias de medo, e que já se acabara, arruinada pela chuva e pelo tempo, e que ainda buscava enquanto navegava pelo campo de batalha de uma cidade que o detestava e aguardava ansiosamente o seu fim.

Havia algo de lírico na forma como ele andava quando voltava pra casa. Porque não andava, arrastava. E não tinha casa.