Da alta periculosidade dos pactos

Dá pra saber quando ele tá chegando. Porque o gato se esconde embaixo do sofá. É o único momento em que o gato faz isso, de outro modo sempre tão valente. Mas eu entendo. Eu faria o mesmo se fosse ele.

Deixo a porta aberta. Heylel sai do elevador e abre a garrafa de uísque na mesa. Serve uma dose, bebe, senta ao meu lado no sofá. Pronto?, ele diz. Pronto, respondo, uma bola na garganta. Sabe, ele volta a dizer, você não é obrigado a nada. Pode aceitar, pode recusar. Nada é imperativo.

Nada é imperativo, penso, pesando a alternativa. Duvido que ele ofereça algo a uma pessoa que pode se dar o luxo de recusar. Tranco o gato assustado. Descemos pelo elevador e abro a porta do carro pra ele, estacionado no meio-fio. Dou a volta, sento no banco do motorista, engato a primeira. Ele tira um cigarro do bolso do paletó.

Enquanto seguimos pro endereço, penso em Antônio. Em como Antônio fodeu com tudo decidindo me passar a perna. Agora quem se fodeu foi ele. Foda-se, foda-se todo mundo. Se a danação te permite alguma coisa, essa coisa é mandar todo mundo à merda.

Estaciono do outro lado da rua. Heylel espera eu abrir a porta. Uma vendedora de picolé observa, curiosa, ninguém sair do carro. Afasto ela com a mão. Atravessamos a rua. Bato na porta da casa. Antônio abre e leva um na fuça. Cai de costas, tentando se agarrar a algo e puxa um multiuso pro chão, que tomba cuspindo papéis e pastas. Entro e fecho a porta. Ele se arrasta pro fundo. Heylel observa a sala. Espero ele falar alguma coisa. Mas é Antônio quem fala.

Não, não, não, eu disse que ia te enviar a pedra, ele diz, olhando nos olhos de Heylel, o que não achei que fosse possível, Ela tá vindo, foi o paraguaio quem me ferrou, barraram ele na fronteira, ele atrasou uma semana mas tá chegando, por favor, me dá mais um dia, mais um dia. Heylel estala o dedo e o pescoço do homem gira, fazendo uma volta completa. Ouço os ossos quebrando.

Foi você quem encomendou a porra da pedra?, digo. Faz alguma diferença agora?, Heylel diz.

Tomo a dianteira. No fundo do corredor uma porta, e atrás dela uma escada que leva ao porão. Ali, amarrado na pilastra, um homem irreconhecível sem um dos olhos, um braço quebrado, as unhas dos pés arrancadas, a face dilacerada por rastros de prego. Pelos ossos do meu pai, diz Heylel, te foderam de jeito, ein. Poisé, eu digo, por isso que você tá aqui.

Arrumar essa tua carcaça não vai ser problema, ele diz. Só preciso que cumpra sua parte. Eu balanço a cabeça. Ele se ajoelha diante do corpo, passa as mãos sobre as feridas, corta a corda com o dedo e o deita no chão. Deita aqui, ele me diz. Obedeço, sentindo as pernas encaixarem e depois os braços e depois a cabeça. Abro os olhos. Tento falar mas a língua do tamanho do mundo não deixa. Balbucio e ele toca meus lábios, costurando com o nada a carne. Levanta, ele diz. O outro logo vai chegar. Quero você longe daqui quando isso acontecer. Lembra. Não esqueça. Ou eu faço pior.

Quando dobro a esquina vejo o paraguaio vindo no sentido contrário, os óclãos escuros na cara, o som alto vazando pela janela do carro. Gostaria de poder assistir o sangue desse puto escorrer até não sobrar mais nada.

Trinta e sete anos mais tarde, depois de sessões inesgotáveis de terapia, de remédios, bebida e depressões agudas, sou incapaz de matar um bebê na maternidade do hospital. Fico parado com a mão no peitinho dela, subindo e descendo com a respiração. Enfio a pistola na minha boca e aperto o gatilho.

Acordo trinta e sete anos no passado, amarrado a uma pilastra, o paraguaio me encharcando com álcool e acendendo um fósforo, cantarolando a música que ainda consigo ouvir vazando pela janela do carro. Não sei como fez aquilo com o Antônio lá em cima, ele diz, mas duvido que vai fazer comigo agora.

Eu também duvido, penso, chorando pela esposa que não conheci, pelos filhos que não tive, pelos netos que não carreguei no colo, a memória viva deles queimando mais que o fogo.