Da culpa num assassinato não premeditado

Josaldo matou um homem. Agora aguardava, no escritório do delegado, pelo próprio delegado, que via através das persianas abertas e do vidro das janelas, equilibrando nas mãos uma xícarazinha de café. Esquivou de uns tantos policiais, encolhendo a barriga o máximo que conseguia, que não era muito, para serpentar pela delegacia sem derrubar pilhas de papéis, telas de computador e ocasionais porta-retratos.

Josaldo, é isso?, ele disse, assentando a xícara na mesa e fechando a porta atrás de si. Vejo que você se adequou bem à cadeira, melhor que muitos outros que já sentaram nessa cadeira antes, e ouso dizer que seu conforto parece um bom indicativo da veracidade da sua culpa.

Josaldo não esboçou reação. O delegado bebericou o primeiro gole do café.

Que é exacerbada, logicamente, continuou. Veja, há muitos tipos de infortúnio no mundo, todos eles lamentáveis, e a morte de uma pessoa é talvez o mais lamentável deles. Mas é necessário alocar os devidos atenuantes para todo tipo de desgraça, talvez as reduzindo a desgracinhas toleráveis, talvez as cultivando até se tornarem marcos negros da história humana. Eu gostaria de saber, é claro, os motivos que o levaram a cometer tal atrocidade. Pelo relatório do legista e pelos relatos das testemunhas a vítima foi empurrada, magistralmente empurrada, ouso dizer, e acabou encontrando seu fim ao perder o equilíbrio e se chocar com o chão, duro como de costume, com a cabeça.

Estou correto nessas asseverações, presumo, o delegado disse, bebendo outro gole. Josaldo piscou.

O interessante neste caso, e o que mais me preocupa é, claro, a identidade da vítima. A foto no documento, que mostra a cabeça ainda em sua pré-condição, nos indica que de forma alguma o ferimento pode ser classificado como resultado de um simples empurrão, ainda mais um empurrão numa avenida que todos sabemos ser bem frequentada. É talvez uma culpa compartilhada, no máximo isso, note, o que temos aqui. É possível dizer que a real causadora da morte foi a gravidade. Na verdade, é óbvio afirmar este tanto. É impossível, até onde sei, interromper a queda de um objeto ou pessoa qualquer, uma vez submetido à atração inescapável pelo centro planetário. O que causa esta queda é importante sob o ponto de vista contextual de qualquer ação, sobretudo em análises críticas ou acadêmicas, mas aqui nos vemos diante de um imbróglio de ordem prática. Em todo caso, é talvez necessário, para o bem da ordem pública e da reputação da nossa instituição, que seja pelo menos declarada a intenção deste tal ato originador, para que não possa ser confundido com um movimento nascido de más intenções.

Eu diria, ao analisar rapidamente a sua pessoa e a sua apresentação, que o senhor percebeu uma moeda no chão, ou algo brilhante de notável valor, e empurrou o homem para que ele não identificasse o objeto, para que não pisasse em cima ou apenas para que a coleta fosse mais rápida, tendo ele como obstáculo, o que é perfeitamente tolerável nos dias de hoje. Imagino que eu esteja certo novamente, não?

Josaldo enfiou a mão no bolso para pegar a moeda, mas deixou a mão lá.

O relatório será completo, extenso, pomposo e redundante, como é a ordem natural das coisas. Fico feliz em dizer que o senhor é um homem culpado, sob todas as óticas, mas não é protagonista da culpa e é, portanto, escusável de qualquer prejuízo que essa fatalidade possa trazer à tona. Deixemos que a natureza, essa grande assassina, aceite a acusação que lhe cabe. É um prazer, ao menos para mim, saber que há um homem digno de volta às ruas, não deixando que as moedas percam seu valor soterradas pela sujeira, ignoradas por aqueles que poderiam usufruir delas em sua completa finalidade. Aguarde alguns minutos para assinar o relatório, que será redigido pelo senhor Flann, e considere-se livre.

O delegado tomou o último gole do café e saiu para esquivar seu barrigão de outros obstáculos.