Da Inconveniência de Certos Assassinatos

Encontraram o corpo nos fundos de um depósito abandonado no Coxipó. O perito criminal José Cardoso produziu um laudo e a médica legista Juliana Dias outro. O investigador Carlos Estrela Santana lia ambos na poltrona de casa, com um filme do Tela Quente no mudo, mordiscando um pedaço de pizza da noite anterior, gelado, que amaldiçoou quando uma calabresa escapou da cobertura e caiu no chão. O corpo já fora identificado pelos pais, que haviam registrado um boletim de ocorrência na delegacia do Porto um dia depois do desaparecimento e um dia antes da descoberta do cadáver da filha, Angélica Monteiro Sobrinho.

O assassinato de Angélica, cujo corpo foi violentado, com vestígios de sêmen encontrados nas cavidades vaginal e anal, possuía vinte e seis lesões perfurocortantes, provavelmente feitas com uma faca de cozinha, na região torácica, e gerou revolta popular que só não foi maior porque a família de Angélica era muito pobre e pouco influente. Foram publicadas matérias com declarações sucintas do diretor do Instituto de Criminalística Josué Labareda nos três jornais de Cuiabá. Um quadro inteiro do programa televisivo Cadeia Neles foi dedicado às entrevistas com moradores próximos ao local de desova do corpo, entrevistas com os pais da vítima, declarações insossas do delegado Lorenzo Garcia, responsável pela investigação, e uma recapitulação bastante melodramática dos fatos feita pelo apresentador.

A atenção rendeu o conserto imediato da iluminação pública da rua do depósito abandonado e suas proximidades, um grande apoio da comunidade evangélica do bairro Porto, da qual a família Sobrinho fazia parte, e duas ligações anônimas para a produção do programa Cadeia Neles, cujas gravações foram repassadas ao investigador Carlos Estrela Santana, apontado pelo delegado para o caso.

Carlos Estrela Santana recolheu as gravações em um pendrive no estúdio de TV e ouviu-os no seu computador na delegacia. Eram de rapazes diferentes. O primeiro dizia que Angélica saiu na noite do desaparecimento com amigos para uma festa na praça da Mandioca mas não chegou a aparecer na praça. O segundo dizia que a menina namorava um rapaz mais velho há algumas semanas. Carlos Estrela Santana descobriu muitos detalhes da vida da vítima conversando com os pais, com a irmã e com os vizinhos, mas sabia que tinha mais chances de descobrir algo substancial com seus colegas de sala, do último ano do ensino médio no Colégio Estadual Presidente Médici. Conversou com cada um deles na manhã seguinte, na sala da diretora, requisitada por ele durante o período matutino. Reconheceu as vozes dos garotos que ligaram para o programa, e quando os apertou confessaram ser os autores das ligações. Descobriu que o namorado de Angélica se chamava Rodrigo, tinha um Agile quatro portas preto e já a buscara na escola em algumas ocasiões.

Quando Carlos Estrela Santana chegou ao sobrenome Mafuá, descoberto com o auxílio da irmã da vítima, que sabia a sua senha do Facebook e deu ao policial acesso às conversas privadas, soube que as chances das investigações darem em nada eram grandes. Levou a informação ao delegado, Lorenzo Garcia, que a repassou ao Secretário de Segurança Pública, Almeida Galindo, que por sua vez conhecia, além de toda a nata do judiciário e do Ministério Público, o patriarca da família Mafuá, dos maiores produtores de soja e algodão do interior do estado. No dia seguinte, Carlos Estrela Santana recebeu a ordem do delegado de repassar todas as informações reunidas sobre o caso de Angélica Monteiro Sobrinho para o investigador Astor Rodriguez. Carlos Estrela Santana disse que não entendia a mudança, sendo que entendia perfeitamente, ao que o delegado Lorenzo Garcia disse que a ordem vinha de cima e não havia nada que pudesse fazer.

Carlos Estrela Santana pegou o caso que deixara de lado para investigar a morte de Angélica, o do senhor Roberto Vásques, morto na porta de casa com cinco tiros de uma Taurus .40. Relia o laudo do perito Henrique Praeiro e o do médico legista Rosano Calavera sentado na poltrona de casa, com um filme do Tela Quente no mudo, mordiscando um pedaço de pizza pepperoni que acabara de pedir. Essa noite tomou algumas cervejas, assistiu um pouco do filme e dormiu ali mesmo. Foi acordado pela esposa e chegou atrasado na delegacia, onde cumprimentou o delegado e passou a rever os passos que já efetuara naquela investigação e os passos que daria em seguida. Checou com o colega Astor Rodriguez se precisava de auxílio com algo, Astor Rodriguez lia um romance policial, agradeceu e voltou à leitura. Carlos Estrela Santana tomou um Sonrisal. Sentia uma azia terrível.