Da melodia afiada da fala

A água cai de lado, martelando o asfalto conforme as golfadas do vento. Noites chuvosas são as piores porque me fazem lembrar da primeira noite, quando Marla ainda estava viva, quando o que eu pensava ainda me pertencia, quando abraçar sua cintura ou tirar seus cabelos da frente dos olhos eram ações que eu tomava por iniciativa e gosto, não por outra coisa.

A chuva lava o carro e os vidros, escorrendo morosa nas janelas que nos permitem olhar além da calçada, da grade, do jardim, acima, na segunda janela da fachada, a luz viva no recorte da moldura de alumínio.

Ligue o rádio, ele diz, e ligo na estação de sempre. Ella Fitzgerald em um de seus scats. A sincronia é tamanha que o suave batucar de pés que ele faz no banco traseiro eu imito no tapete do motorista. Perguntar qualquer coisa é inútil. Guardo a chance pros momentos cruciais. Ele não sente necessidade de me explicar qualquer coisa, de demonstrar qualquer lógica. Às primeiras perguntas seguiram os pedidos de silêncio que se prolongaram por dias, até que o tédio o fez reaver a vontade de ouvir minha voz, e assim o fez. O pouco que entendo é o que intuo. E intuo que ele está se vingando. Não sei por quê, não sei até quando. Talvez porque consiga fazer o que faz. Talvez até que sejamos velhos caquéticos, ou até que alguém consiga pará-lo. Não espero estar vivo a essa altura, se for o caso.

A chuva cai fina quando a luz da janela é apagada, e o desfile de jazz e soul segue preenchendo a câmara acústica da Pajero. Ele ainda espera Coltrane, Miles e Aretha darem o ar da graça.

Desligue o carro e venha abrir a porta, ele diz.

Abro o guarda-chuva e andamos até o portão.

Abra isso, ele diz.

Tiro do bolsão do sobretudo o alicate, despedaço o cadeado. Ele segue na frente. Damos a volta na casa. Nos fundos, um cachorro late.

Quieto e parado, ele diz.

O cachorro continua latindo com a bunda grudada no chão, mudo.

A porta, ele diz.

Pego as chaves de pressão, cavuco a tranca até encontrar os pontos. Ficamos um tempo parados, os olhos se acostumando. Ele sobe as escadarias. Sigo. No corredor do andar de cima, quatro portas. Uma delas aberta, o banheiro. Abro a próxima. A cortina está fechada, então não vemos nada delineado nas sombras. Ele acende a luz.

Uma cama com lençol rosa, uma menina de cerca de 5 anos, um coelho de pelúcia ao lado do travesseiro. Ela se mexe com o incômodo da luz, vira, suspira, mas não acorda. Sinto o sangue pulsar no céu da boca, nas gengivas, respiro pelos dentes. Ele apaga a luz e sai. Estremeço.

A terceira porta é de um escritório, a janela sem cortinas deixando a luz da rua entrar, o cômodo que vimos aceso lá de fora. Vazio.

Abra e acenda a luz, ele diz, diante da última porta.

Na claridade recém-descoberta, um homem barbudo e uma mulher, ambos grisalhos, sob as cobertas. Ela abre os olhos e o cutuca. Ele se vira pra alcançar os óculos na cômoda. Olha na nossa direção.

Barbosa, diz, mas é tudo que tem tempo de dizer, porque o homem que me guia, cujo nome descubro depois de meses comendo, dormindo e vegetando ao seu lado, fala.

Asfixiem, diz. E eles levam as mãos aos pescoços. A mulher se contorce sobre a cama. O homem levanta e se arrasta em nossa direção, tentando falar, tentando engolir, e cai. Barbosa chuta seu rosto. O filete de sangue do nariz coroa o roxo das bochechas, o olhar perdido.

Ele dá meia-volta. Não respiro quando passamos novamente pela porta da menina. Refazemos o caminho até o carro. Ele diz o nome do bar dos últimos dias, onde temos bebido como velhos amigos. Onde ele ainda não decidiu dizer a todos que arranquem as roupas e fodam até a morte ou bebam até os estômagos explodirem.

Sorria, ele diz. Meus dentes despontam no retrovisor.