Das responsabilidades de um pai de família

O soro vem diluído na água, se esquivando das garrafas pet, das latinhas e dos pedregulhos, se encaracola num arame ou outro, vai fluindo, passa pelos enormes túneis de canalização, onde tremelica sob as estruturas que solfejam de acordo com os carros e ônibus que ladeiam as ruas acima, segue entre as rampas de concreto, reluzente sobre o verde arrastado das algas ranhentas, atravessa o último túnel, mais largo e cavernoso, onde as ratazanas trazem seus filhotes como os humanos levam os seus à praia (sem as cadeiras de sol), e salta novamente pro frescor da luz e desvia das pedronas e desemboca no rio Cuiabá, com uma chance de 50% de colidir e ser filtrado pela nuvem enorme de produtos químicos formada na desembocadura pro rio.

Escolho o soro que não é filtrado pela nuvem, abro o bico, deixo a papinha entrar e engulo. Crá-craaaaa-crá. Rançoso, como sempre. Mas cheio dos nutrientes (alguns deles mortíferos). Abro as asas, pulo e plano sobre a água corrente, passando por baixo da ponte, agradecendo o dia nublado que não crava mais um peso metafórico nas minhas costas, e sigo por algumas curvas até a abertura na mata que dá no laboratório. É um dia como qualquer outro. Meus companheiros tuiuiús vão chegando aos poucos, de baixo e de cima do rio, e formamos a fila. Não gosto muito de conversa fiada, então evito puxar papo essa hora, que aliás é quando os sintomas do soro começam a se manifestar e se forma a nebulosa de peidos, o que também explica porque evito ficar com o bico aberto nessa pestilência.

Na minha vez, atravesso o portal desmagnetizador e vejo o doutor lendo algo na tela. Ele se vira e pergunta se vou bem, se estou sentindo algo fora do normal. Digo que não e que eu e minha família estamos muito bem, obrigado. Ele me encaixa no tomógrafo, liga a luz roxa e observa a tela. Ali, remexendo no meu estômago, o soro, o suco gástrico e os outros fluídos. Ele pinga um composto dentro do meu bico.

Poucos segundos depois, todo o conteúdo do meu estômago começa a fermentar e borbulhar e sinto um arroto chegando. O doutor pede pra eu segurar. As borbulhas vão crescendo e crescendo e tenho que travar tudo na garganta e enfim o líquido se acalma e o doutor apanha a rede pastosa que parece um filtro dos sonhos encaixado na ponta de uma vara de plástico. Solto o arrotão e assopro e as gosmas na rede balangam e trocam de cor. Ele observa a metamorfose por alguns segundos, prega uma etiqueta na vara e deposita num tupperware. Quando o empilha sobre as outras amostas do dia, chama o próximo.

Na saída, o auxiliar me dá uma sardinha, espera eu engolir e pendura uma sacola biodegradável no meu bico. Sobrevoo os companheiros na fila, descendo o rio até nossa árvore careca e o ninho, meu e de mais cinco comparsas. Meus pequenos Robinho, Tobinho e Dobinho, colados um no outro e tremendo de frio, esperam eu depositar a sacola no fundo do ninho e futricar com o bico até revelar a sardinha picotada. Avançam. Flora, minha vizinha, já está ali com os seus filhotes. Pergunto se ela viu por onde anda minha parceira, a Suzy.

Você conhece a Suzy, ela diz, deve tá na gandaia ainda.

Apesar de fazer um puta esforço pra ignorar o tom condescendente e acusatório da vizinha, penso que é verdade, a Suzy tá passando dos limites. Vamos ter uma conversa séria quando ela chegar.