De quem ama em segredo

Padre, eu pequei.

Pequei na grama. Vi os pedacinhos dela espalhados entre as folhas. Era um dia quente, lembro de tirar a camisa e amarrar na cabeça. Lembro do cheiro enquanto engatinhava pelo chão. Sândalo, o mesmo de um sabonete em barra que comprei no mercado do Porto. Naquele dia pensei no futuro e vi que poderia chegar em casa cansado e ter um bálsamozinho que fosse, ela, só de ficar perto pra me acalmar, eu cheirando e acalmando. Juntei os pedacinhos numa tigela até o sol falhar.

Pequei nos fundos de casa. Joguei os pedacinhos na terra adubada e fiquei batendo com a mão até os montinhos endurecerem. Reguei com água santa. Peguei a cadeira de fio e li a Bíblia com os pés descalços sobre a terra, pra ficar conectado, pra não perder a ligação que a gente tinha. Ela levaria semanas pra crescer e eu me sentia culpado de ficar algumas horas que fossem sem aquele toque, até o ponto em que peguei o travesseiro e passei a dormir ali mesmo. Eu mimava ela. Eu sei.

Pequei na fila do banco. Uma das fiéis da congregação perguntou como eu estava. Eu disse apaixonado. Ela me olhou de lado, pensando se minha paixão era por Cristo ou por Maria ou por algum nova caridade planejada pela igreja. Eu disse que era por uma mulher, uma mulher que ainda não viera ao mundo, e ela tomou o que eu falava como a mensagem críptica de um anjo ainda não revelado ou uma santa que o Senhor preparava em segredo. Eu me referia a ela que crescia forte nos fundos de casa, a quem eu dedicava boa parte da minha devoção. Naquele dia, na missa, atentei pros desígnios confusos de Deus e pedi a todos que tivessem fé e deixassem Ele apontar o caminho.

Pequei na própria igreja. Eu a trouxe, padre. A trouxe pra dentro da fraternidade, pra debaixo dos olhos de Cristo, pro seio dos fiéis mergulhados em orações. Eu deixei que ela vicejasse aqui pois sabia que não havia ar mais puro que aquele no seio do Pai. E o tronco se tornou coluna e os galhos braços, pernas e folhas se tornaram dedos. E a amei pelo que ela era, graça enviada para me acompanhar nos terríveis tempos de dúvida em que vivemos.

O padre parou de encarar o espelho do banheiro. Deus ouvia suas palavras, tinha certeza disso. Lavou o rosto, desceu a escadaria e entrou na sala, a ceia posta. Sentiu o cheiro de sândalo do sabonete. Maria colocou a panela de feijão preto na mesa.

O padre pegou a mão da esposa, dos filhos, sentou e rezou um Pai Nosso. A ceia abençoada, começou a comer.