De quem assiste de longe
Desce o prato, o guincho aumenta.
— O que eles tão fazendo reunidos ali, Adalberto?
— Esperando a comida.
— Desde quando você não alimenta eles?
— Acho que uns quatro dias. Mas tão com uma energia danada ainda, tá vendo?
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Desce o prato, o guincho aumenta.
— Ainda alvoroçados desse jeito?
— Resolvi não dar comida pra eles ontem.
— Olha, isso tá ficando perigoso. É melhor se ater à rotina, Adalberto. A fome é imprevisível.
— Haha, olha aqueles ali, tão arrancando o cabelo um do outro pra ficar mais perto do prato.
— Qual a graça nisso?
— Você não passou tempo que chega aqui com eles. Demora pro senso de humor aflorar. Mas é inevitável.
— Esqueceu que eu trabalhei aqui dez anos, antes do seu tempo?
— Sério?
— Claro. Como você acha que virei seu supervisor? Eu lá ia ter cacife pra supervisionar a operação se não conhecesse ela nos mínimos detalhes?
— Não seria novidade em repartição pública nenhuma.
— Fodam-se as repartições públicas. Dá a comida pra eles. Não quero problema por aqui.
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Desce o prato, o guincho aumenta.
— Caralho, Adalberto. Você não alimentou eles ainda?
— Calma, chefia. Tem água lá embaixo. Eles podem aguentar semanas sem comida.
— Podem aguentar sim. Se for necessário. Você andou comendo esses sanduíches aqui na cabine?
— Sim, por quê?
— Porque eles podem te ver. Você deixa eles sem comida e come na frente deles. Excelente ideia.
— Desculpa. É que não aguento mais esse fedor, essa barulheira. Queria fazer eles sofrerem um pouquinho.
— Já passei por coisa parecida, mas consegui me controlar. Lembra que não é sua competência decidir isso. As ordens vêm e você cumpre, apenas. Sei que como fica sozinho com eles quase todas as horas do dia, começa a achar que pode fazer o que bem entende. Mas não é assim.
— Certo. Vou descer o prato. Quer assistir?
— Desde meu último dia usando o seu crachá eu não assisto mais isso. Não tenho estômago. Só faça duma vez.
— Entendido.
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O prato vazio.
— Me ouviu, finalmente.
— Foi o jeito. Mas não foi bonito.
— Ah, com certeza não. Saldo de mortos?
— Uns 20. Pisoteados. Depois daquele tempo, um prato não foi suficiente pra saciar a fome de todos.
— Claro que não foi. E não vai colocar mais comida no prato?
— Olha pra eles. Se não coloco comida, não se manifestam, ficam letárgicos.
— Claro, não são assim tão burros. Precisam ver a comida pra querer a comida.
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O prato ainda vazio.
— Adalberto, lamento te informar, mas estamos passando por uma reestruturação nesses tempos de crise. Você foi despedido. Só fiquei sabendo hoje dos cortes. Lamento mesmo.
— Foi por que eu fiz esses experimentos nos últimos dias, não foi?
— Pode ter certeza que não. É um problema financeiro, gerencial, administrativo. Além dos benefícios previstos, será providenciada uma carta de recomendação.
— Bom, pelo menos isso.
— Agradeço seu profissionalismo e compreensão.
Adalberto desce as escadarias laterais do grande tanque. Se junta aos outros, olhando a face inferior do prato, suspenso muito acima da sua cabeça.