Do Dom de Ouvir Nomes

Eu ouço as cabeças que meu pai corta.

Elas sempre rolam até os fundos do palanque. Eu fico em cima dum toco e espero elas pararem no arrebite de madeira, onde se pregam no tablado com o sangue e as gosmas que saem pelo que sobrou do pescoço, e ficam umas piscando igual peixe, outras fazendo careta, outras mexendo as orelhas ou tendo espasmos na testa. Depois falam um nome. Só eu ouço esse nome. É o da pessoa que vai morrer no dia seguinte, cuja cabeça vai rolar e me falar o nome do morto do outro dia e assim por diante.

A cabeça de hoje fala Josefaldo Varela. Josefaldo Varela é o meu pai, que tá ali em cima, esperando o corpo parar de estrebuchar pra jogar no carrinho do coveiro, que vai enterrar junto com essa cabeça. Meu pai não acredita que eu ouço as cabeças. Mas ouço elas há muito tempo, desde que a vila era grande, cheia de gente.

Digo na hora da janta, ele não acredita, olha pra minha mãe, fala Esse menino tá enlouquecendo, o que que eu fiz pra ser condenado? Minha mãe fica quieta olhando pra mim, depois pergunta É sério isso que você tá dizendo?, e embora eu confirme com a cabeça até ela exigir que eu fale e eu diga Sim e meu pai tente trocar de assunto, ela não fica nem um pouco aliviada. Me manda cuidar da louça enquanto varre a casa e fuma um palheiro atrás do outro.

No dia seguinte Balbino chega esbaforido e diz pra gente que prenderam um homem, um forasteiro que chegou todo valente contando mentira. Meu pai pega o chapéu e sai, eu vou atrás. Quando chegamos tem uma aglomeração na cadeia, esperando o cabra desmaiado acordar dentro da cela. O xerife explica que tava arredio e tiveram que derrubar. Meu pai diz que quer falar com o sujeito antes de levarem pro juiz. Abrem caminho, papai é respeitado, o único que corta cabeça e dorme à noite. No chão um homem barbudo, magro, vestido com uma roupa diferente. Papai fica dando tapa no rosto dele. Quando acorda, meu pai tampa a sua boca e fala algo no pé do ouvido. O homem tenta responder, um grunhido, já que a mão continua ali. Papai grita pra dois da roda entrarem e segurarem o prisioneiro. Pega a faca e manda outros dois abrirem a boca, puxa a língua e corta. O xerife grita, pergunta por que ele fez aquilo. Papai diz que porque o homem tava amaldiçoando o povo. Ninguém rebate.

Levam ele no ferreiro pra cicatrizar. Precisa ficar vivo pra morrer amanhã. Qualquer forasteiro que pisa aqui fura a fila, não temos mais tanta gente assim no povoado. Papai diz que podia chegar mais, todo dia, que aí o povoado crescia e só morria quem a gente não conhece e com quem não se importa, que é o que acontece num dia bom, porque não para de morrer gente no mundo. É igual aqui, eu pergunto, que morre gente todo dia na mesma hora? Não, ele diz, lá fora é diferente.

Subo no toco e espero papai soltar a lâmina. Ele fica encarando mamãe, que hoje tá do meu lado. Ela nunca vem. O homem barbudo também fica olhando pra ela. Ele não consegue mais falar mas solta uns grunhidos que lembram Vera, o nome dela. A cabeça rola e fica repuxando no canto da boca. Ele diz Andolfo Piranjuba da Silva. Não conheço nenhum Andolfo, deve ser do lado de lá do rio. Mamãe me abraça, pede pra eu nunca mais voltar ali, é horrível ver aquilo.

Mas no dia seguinte volto pra ouvir Andolfo falar.