Estimação

Odeio quando ela afunda os dedos na minha cabeça. Só não mordo porque, pô, vai que depois desse vem aquele carinho circular, aquele atrás da orelha, aquele de dedos de aranha na barriga?

Adoro quando ela cozinha bêbada. Lasanha de carne moída, pizza de calabresa, filé acebolado. Sempre esquece de guardar algo na geladeira, caixote desgraçado, túmulo infernal onde sepulta tanta coisa deliciosa, e aí sobra pro papai aqui enfiar a garra no pacote, desdobrar, abrir, enroscar com essa linguinha áspera que o Felinão lá de cima deu e papar o que couber na pança.

Odeio quando ela chega em casa tarde porque bate um desespero de ficar sozinho, aflito de ter acontecido algo, algum acidente a bordo daqueles pneus monstruosos, e acabar euzinho sem comida, sem carinho, sem um lugar com esse sofá macio pra morar.

Adoro quando tá frio e ela acorda cedo, veste o moletom cinza, me coloca dentro dele com a cabeça saindo pela gola e me segura pelos bolsos. Damos umas voltas pelo parque e ela compra pão francês na padoca, arranca o miolo e me dá. Quando tá quentinho, então, putz!

Odeio quando ela capota vendo TV porque o barulho não incomoda ela mas me incomoda pacas. Não raro tenho que sair pela janela e dormir em cima do muro, o que até dá pra fazer quando não chove. Mas cimento é duro, diacho, e eu não teria que passar por isso se ela fosse um pouquinho mais atenciosa e colocasse no maldito timer.

Adoro o fato de ser o gato dela especialmente quando os clientes chegam. O que acontece todo dia, exceto se tá gripada e enche a mão de ranho e quer fazer carinho, ah, faça-me o favor! Quando chegam, sinto na hora se os infelizes prestam. No sentido de dar merda mesmo. Dela apanhar, de não receber, de ouvir coisa sem noção e nojenta. Dou uma cheirada no batente da porta antes dela destrancar. Dá pra sentir por debaixo da fresta. Se é cliente bom, coloco a língua pra fora. Se é caroço, dou as costas e saio de perto. Ela diz que acabou de menstruar, pede desculpa e nem abre pra ver a cara do coitado, que sai desconsolado.

Odeio o fato dela ser tão bobinha que o dia que descobrir a estatueta cheia de símbolos dentro da caixa da privada vai jogar fora sem pensar duas vezes, sem entender que foi o índio, aquele cliente antigo de quem ela tanto gostava, que colocou lá, e sem entender porque depois disso nunca voltei pra casa.