Mergulhadores

São três garrafas pra parar de tremer as mãos.

Ele chega quando peço a quarta e senta do outro lado da mesa. Não nos cumprimentamos. Entrego o envelope. Peço outro copo e sirvo mas ele ignora e lê. Pergunta se tenho certeza. Só balanço a cabeça. Evito falar pra voz não falhar. Ele agarra o copo e toma de uma vez, um golote que não passa pela garganta, fica preso na boca, uma bolha de cevada que exerce tamanha pressão que logo seus lábios estão dentro do vidro, e seu nariz e seu queixo e cabelo, suas orelhas e pescoço e ombros, peito, barriga, quadris, bunda, coxas, joelhos, pés. Olho ao redor. Boteco vazio, o dono nos fundos limpando algo, cheiro de fígado frito no ar.

Um segundo homem chega, senta e começa a me fazer perguntas. Conforme respondo, ele tica um papel em uma prancheta. No fim, aponta o copo cheio da massa disforme. Respiro fundo e viro a dose. Consigo sentir o corpo comprimido dançar sobre a língua, roçar nos dentes, pinicar o céu da boca. Tento engolir e engasgo. O homem diz que posso morder um pouquinho, com cuidado, pra facilitar a descida. Mordo duas vezes e sinto os ossinhos quebrando. A garganta é arrebentada, todo o caminho até o estômago, mas funciona. Posso senti-lo se desdobrar lá dentro e o enjoo me faz levar a mão à boca pra segurar o vômito, evitado com muito custo.

São minutos de extremo desconforto enquanto o feto nada dentro de mim, vasculhando os órgãos, nadando na cavidade torácica, fazendo rapel no fêmur. Quando estou prestes a pedir o encerramento emergencial sinto um fisgão no umbigo. O homem nota meu incômodo e pede que eu deite no chão. Abre a camisa e se comunica com o agente interno em código Morse pela ponta do dedo. Enfia uma pílula na minha boca e pede que eu fique calmo. Engulo e alguns segundos depois ouço o barulho de carne rasgando mas não sinto nada, e vejo um pequeno braço se lançar pra fora do umbigo e ser agarrado pelo homem, que puxa o companheiro. O rombo sangrento é imediatamente reparado, mãos hábeis tricotando a carne com agulha e linha preta. O primeiro homem cresce e cresce como um balão se enchendo de ar até alcançar o tamanho que tinha quando o conheci.

Ele levanta se apoiando na mesa, um braço mole, uma perna torta e uma mancha de sangue na altura do peito. Peço desculpa pelas mordidas. Ele só balança a cabeça, como se aquilo fosse rotina. Quando estou costurado, recebo outro comprimido e sou ajeitado na cadeira. Pergunto se funcionou. O primeiro homem tira do bolso, com o braço bom, uma esfera negra que pesa em sua palma, uma coisa que traga a luz ao redor e possui filetes brancos que se contorcem na superfície feito nuvens revoltas. Agradeço. Eles vão embora.

Peço a quinta garrafa. Bebo pensando em Antônia, em como pensar em Antônia não dói.

  • Loreci Demeneghi

    Bom o texto, embora tenha me embrulhado o estômago!