Metaconto

Lá estava eu escrevendo um conto.

Nesse conto havia um escritor que escrevia um conto. Às vezes funciona assim mesmo. Esse escritor do meu conto escrevia um conto em que um escritor escrevia um conto. É nessa terceira camada que as coisas começam a acontecer. Recapitulando: somos o narrador; o segundo escritor, meu personagem; o terceiro escritor, o personagem dele. Dá pra expandir, mas aí fica apelativo, a maior parte das pessoas lê pra esclarecer, não pra confundir.

Voltando ao terceiro personagem. Ele era um escritor com bloqueio criativo. A angústia da tela em branco é mesmo horrorosa. Por isso é que se aconselha parar de pensar e criar expectativa e escrever logo uma frase, qualquer coisa, o que vier à cabeça, seja a descrição dos arredores, um fio de pensamento, uma lembrança. Não precisa servir pra nada. É só fagulha. Será apagada. Talvez use uma palavra pra partir pra outra coisa, pra história em si, pro que de fato vai acontecer nesse universo infinito que é a literatura à beira do nascimento. Então ele escreveu 10 linhas. Eram 10 repetições da seguinte frase: Eu não consigo escrever. Não aproveitou nada. Apertou backspace até o branco voltar a encará-lo.

O segundo personagem levantou pra esticar as pernas, pensando no seu personagem travado naquele cubículo empoeirado, rodeado dos livros que lhe inspiraram e o fizeram escolher essa trilha árdua e raramente recompensada que é a vida de escritor. Pensou nele solitário, incapaz de aproveitar aquelas duas horas reservadas para a produção, as duas horas mais aguardadas do dia, depois que a mulher saía pro trabalho e antes de buscar as filhas na escola. Sentiu como se fossem dele os minutos escorrendo e a respiração faltando, os dedos carregados de culpa pousados nas teclas. Com as pernas já esticadas, olhou ao redor, percebeu-se sozinho no cubículo empoeirado e rodeado pelos livros que lhe inspiraram, pensou satisfeito que escrevera alguns bons parágrafos já na primeira hora das duas que possuía antes de sair pra buscar as filhas, e resolveu fazer um café na cozinha.

Escrevi sobre meu personagem preparando o café, adentrando um longo e dramático fluxo de consciência despertado por um garfo de dentes entortados na pia. Descobri, naquele fluxo de consciência, coisas que não imaginava a respeito dele e que me vieram com facilidade, da infância tranquila à gravidez inesperada na juventude ao casamento morno, às amantes de terça e quinta, às tentativas frustradas de aproximação dos editores, às pilhas de livros na gaveta esperando o aval de alguém pra ganhar o mundo (não acreditava em auto-publicação). Faltando apenas meia hora pra buscar minhas filhas, imitei meu personagem que imitou o personagem dele e fui à cozinha preparar um café. Resolvi usar os minutos restantes pra tirar o terceiro escritor do bloqueio criativo com uma frase aparentemente inócua que se tornaria a abertura de um grande romance.

Eu, eu mesmo, o eu aqui fora, o eu de verdade, não o eu narrador, saio de casa sem tomar café porque já ligaram da escola e as meninas devem estar com fome.