Náufraga [#170]

Achei o rádio na praia no 107º dia. Abri a tampa e vi duas pilhas enferrujadas, esverdeadas, derretidas. Mesmo assim ligou.

— zzzzzssara. Aqui quem fala é a Jussara. Na escuta?

E assim seguia, repetindo a gravação. Testei outras frequências, mas só aquela funcionava. Levei pra barraca. Fiz a fogueira, esquentei as mãos, tentei dormir e nada. A fome era tamanha que peguei um coco da mochila, quebrei e comi a massa branca pela milésima vez, imaginando um pedaço de costela molinha encaixada nos dentes, vinagrete e feijão tropeiro pra acompanhar. Capotei. Sonhei que um navio avistou minha inscrição feita com barro seco no paredão e um helicóptero apareceu, recheado de saquinhos pardos com Big Macs dentro.

Quando acordei, Jussara ainda tentava entrar em contato. Devia haver uma torre de transmissão por perto pro sinal me alcançar. Ainda não tinha me embrenhado fundo na mata pois achava que a salvação viria da água. Mas se havia uma pessoa viva na ilha eu precisava encontrá-la. Subi a encosta, tentando identificar algo na imensidão desnivelada daquele amontoado de rocha, terra e folhas. Escolhi o ponto mais alto e parti. Cheguei perto do anoitecer. Rodeei algumas árvores e descobri uma cabana, uma antena saindo pelo teto.

Jussara me esperava ali. Atrás dela, outra Jussara. No jardim, regando as verduras, outras Jussaras, e outras mais descascando batatas, limpando peixes, escrevendo numa mesa, cantando, todas variando apenas no comprimento do cabelo e no encardido das roupas.

— Bem-vinda, Jussara — ela disse.

— O que é isso?

— Somos você, você é nós. O tempo aqui é confuso.

— Como assim?

— Há algum distúrbio na regulagem temporal da ilha. Pela nossa contagem, a primeira achou o rádio no 189º dia. Você achou no 107º, certo? A cada nova Jussara diminuímos um dia. Nossa esperança é que daqui a 107 de nós retornaremos ao momento do naufrágio. Até lá construiremos uma embarcação resistente o suficiente pra alcançar o navio e virar o leme antes do choque com as rochas.

— Meu Deus.

— Aqui, toma essa vara. A primeira coisa que nos ensinamos é a pescar. A Jussara 154 vai com você. Boa sorte.