O grande dia de Krentz [#94]

A barba branca tremeu enquanto abria e fechava a boca para proferir as maldições. Pude sentir a raiva, o desejo de vingança exalado no bafo azedo de hidromel. Prenunciou as mortes com tamanha alegria que não parecia um homem que em outros tempos se dedicara inteiramente a Deus. Se por um lado não conseguiu conter a excitação, o álcool ajudando a digerir as emoções, eu tremi de medo, pois me vi diante da inevitável provação. O dia em que todos saberiam se eu era digno de ostentar o título conquistado anos atrás, quando a ameaça foi destruída pela lâmina da minha espada.

A primeira coisa que fiz quando o dia nasceu foi tomar o leite fresco que Imelda tirou de nossa vaca, tão magra e desnutrida que pude sentir o leite desencorpado descendo a garganta feito água. Depois fui ao pequeno santuário rezar aos deuses para que nos dessem forças no desafio. E agora sigo para o campo de batalha, longe dos outros guerreiros, sem coragem de abrir a boca para dizer uma palavra sequer de incentivo aos mais jovens, que me olham curiosos e admirados, certos de que minha presença é garantia de vitória certa. Tantas vidas por terra.

O suor escorre dos cabelos trançados. Torço para que não atinja meus olhos e me cegue enquanto giro a espada entre os inimigos, dilacerando seus corpos, banhando o campo de sangue. Os machucados são irrelevantes. Tenho que continuar. Uma dúzia deles me encurrala enquanto manejo a lâmina em círculos. Os corpos tombam, eu continuo. Sinto o peso dos olhares. Grito e os inimigos temerosos se afastam, como se minha voz pudesse arrebatá-los. Meus braços de veias saltadas cansam mas não param.

Sento no chão, ao lado de tantos corpos sem vida, e vejo o que me fizeram. Um corte enorme na perna, a barriga com linhas de sangue se esvaindo de buracos de estocadas rápidas e grotescas.

Não tenho muito tempo. Os garotos me olham com cara de espanto. Imelda vem correndo de longe, minha vista embaça, parece que nunca vai chegar. Fecho os olhos por um instante, pensando no alívio de ter feito o necessário. Abro os olhos. Imelda chega, me abraça chorando, deita minha cabeça no seu colo. No mar de sangue que nos rodeia. É aqui mesmo que me vou. Sobre os meus troféus, sobre os espólios de guerra. Sobre a grama vermelha. Sobre os campos dos deuses. Sob os deuses. Me recebam.