O livro [#148]

Existe um livro escrito (há divergências sobre a escolha deste verbo inicial) há muito tempo (e este substantivo) sobre o verdadeiro sentido da vida. Uns dizem que versa minuciosamente sobre os questionamentos que os filósofos levantam desde a antiguidade. Outros que se trata de uma comédia humana recheada de tantos sentidos que é impossível interpretá-los todos, conspirando para a teoria de que a vida é tão abrangente que escapa a qualquer definição. Os mais radicais defendem que as páginas estão em branco, mas que a gramatura do papel, a dimensão, a capa, a brochura; tudo indica um invólucro perfeito que esconde em suas quinas e dobras as fórmulas matemáticas que originaram tudo.

Era de se imaginar que quando João encontrasse o livro em uma biblioteca babeliana nos confins de uma cidade nos Balcãs, fosse surpreendido por sua inegável onipotência. Mas sabe-se que ele o pegou, folheou, sentiu um desejo irrefreável de ler, transferiu a atenção para um manual de culinária ao alcance das mãos e tornou-se um dos maiores chefs do mundo. Seria fácil deduzir que o livro divino (divergências diversas infestam este manuscrito; considere-as ou desconsidere-as, não mais as destacarei) o inspirou, mas é mais fácil e crível atribuir este redirecionamento a qualquer coisa que germinasse em sua cabeça como, por exemplo, a conversa com a antiga esposa no dia anterior, então casada novamente e feliz, quando alvejou-o com críticas justificadas do longo e amargo relacionamento de ambos, tocando-o num ponto adormecido, meramente reavivado quando seus olhos cruzaram com a figura majestosa de um bolo de chocolate com suspiro na capa de um manual de culinária.

A experiência de João foi extremamente diferente da de Marcos, que encontrou o livro, por sua vez, numa biblioteca italiana (adquirido numa compra emergencial que salvaria a biblioteca nos Balcãs da falência, e que a manteria de pé até que João, milionário, retornasse para transformá-la num respeitadíssimo restaurante literário). Marcos cruzou com o livro por acaso, como parece ser a regra, e se viu absorvido por sua força inexplicável. No entanto, nunca o abriu, receoso de que em suas páginas se encontrasse a resposta para tudo e a vida perdesse o sentido. Visitou a biblioteca durante décadas, até que morreu um dia segurando o livro, os dedos gelados nem um pouco perto do ato infame de abri-lo.

As histórias se acumulam, como é costumeiro com artefatos excepcionais (há diver–, perdão), e embora atualmente seu paradeiro seja desconhecido, há muito se comprovou que sua existência não pode ser negada, uma vez que se fosse, tornaria inútil todo o empenho gasto em sua dissecação à distância, e sabe-se, por experiência coletiva, que se algo fascina tanto o homem é porque existe de fato, mesmo que o termo existência possa ser discutido em toda a sua amplitude e ambiguidade. Dito isso, é óbvio que nas páginas do livro também se encontra a resposta para esta incógnita. E não seria de se admirar que ela fosse respondida em apenas uma linha. Ou com palavra alguma.