O quadro azul [#46]

Na primeira pincelada Renata soube que seria sua obra-prima.

Seguiu o conselho da agente e postergou a venda para um momento mais adequado. Fotos vazaram. Revistas, rádios, tevês e sites ofereceram fortunas por entrevistas, museus requisitaram o quadro para exposição, colecionadores se estapearam para subir ao topo da fila de interessados. A marca das tintas usadas quadruplicou seu lucro. Cientistas avaliaram as imagens e divulgaram resultados inconclusivos. O azul inexplicável era “desejo feito matéria”, segundo os poetas. Quando uma tentativa de roubo foi invalidada por pura sorte, resolveu guardá-lo num abrigo nuclear.

Suas próximas 3 obras, embora sem o mesmo brilho, alcançaram quantias assustadoras. Apesar do massacre dos críticos de arte a procura aumentou. Amigos esquecidos lembraram histórias para biografias não autorizadas, a casa em que cresceu virou museu, a escola em que foi alfabetizada ganhou um prêmio nacional de incentivo à cultura, antigos trabalhos e rabiscos passaram a circular no mercado negro feito joias preciosas.

Não encontrava coragem para se separar da mais famosa criação. Multinacionais, países e até terrenos na lua despontaram como moedas de troca. A cada nova oferta fincava um pouco mais as unhas na moldura. O papa anunciou que aquele azul era a cor do firmamento quando Jesus Cristo foi crucificado. Os muçulmanos disseram que era a tonalidade do céu no instante em que o anjo Gabriel apareceu para Maomé. Os céticos afirmaram se tratar de descoberta científica incalculável que deveria ser estudada e declarada patrimônio da humanidade.

Renata sumiu. Dois meses mais tarde arrombaram o abrigo. Acharam apenas o quadro. Dela nem sinal. Outro mês e nada, a população aflita. Numa manobra legal a família reivindicou os direitos e leiloou a obra, o dinheiro usado para erradicar a fome no planeta, conforme a vontade manifestada pela pintora. Seu paradeiro continuou um mistério. Ninguém viu o ponto na tela que não estava lá antes, o microscópico aceno para o mundo. Pelo jeito, até Deus podia ser chantageado. Mas Renata passou despercebida. Pudera, usava um vestido azul.

  • Loreci Demeneghi

    Acho uma obra-prima esse teu texto!

    • http://flashfiction.com.br Santiago Santos

      Obrigado, Loreci! Esse é dos meus preferidos também!