O que não é não importa [#128]

Ricket caiu do cavalo.

O cavalo não era um cavalo. Era um tubo translúcido feito para se comportar como um cavalo, repleto de sensores na camada externa para simular a pelagem grossa característica dos equinos. Ricket levantou, acariciou o animal na cabeça e puxou uma maçã do bolso, que ele comeu na palma da sua mão, fungando e olhando com aqueles olhos lacrimosos a grama verde que se estendia até onde a vista alcançava.

A maçã não era uma maçã. Era uma bola de borracha revestida com camurça vermelha, em seu núcleo um pequeno campo de força gerando a textura vegetal. Os receptores na cabeça de Ricket decodificaram as mordidas do cavalo que não era cavalo mordendo a maçã que não era maçã e fazendo os pedaços mordidos que não eram mordidos desaparecerem, migalhas escorrendo da boca pro gramado verde que se estendia até onde a vista alcançava.

A grama não era grama. Era um material sintético, tão fino e leve que balançava com qualquer sopro, absorvendo as migalhas imaginárias da maçã e engolindo-as imaginariamente, o estômago terrestre digerindo os pedaços imaginários e os transformando em energia para abastecer todo aquele cenário enorme mantido por máquinas e ilusões de ótica, o palco caríssimo e utópico de Ricket, refletido na grama verde que se estendia até onde a vista alcançava.

Ricket não era Ricket. Era um cérebro mantido num tanque com formol e bactérias dissimuladoras que enganavam os receptores sensoriais, fazendo-o acreditar que ainda era uma pessoa e não um órgão escalado para experimentos científicos no pós-guerra. Os neurônios comandavam a simulação tridimensional dentro do ambiente controlado de uma fazenda arrojada, com plantações e vento e céu azul, um cavalo robusto e companheiro e o cheiro revigorante de grama verde que se estendia até onde a vista alcançava.

Ricket subiu no cavalo. E com um toque no estribo o tubo translúcido disparou, satisfeito com a bola de borracha encamurçada, correndo pelo plástico verde com um sorridente cavaleiro fantasma no dorso, apertando forte o arreio com mãos que não eram mãos para não cair pela segunda vez num tombo que não era tombo, mas doía.


*este flash fiction foi transformado em áudio-drama pela equipe do site Leitor Cabuloso. Você pode ouvi-lo AQUI.