Olhos emprestados [#90]

Eu tinha 11 anos quando perdi os olhos.

Foi na praça Alencastro, no centro de Cuiabá, esperando o ônibus. Um grupo tocava flauta e violão no ponto. Papai disse que eram hippies, mas achei que eram do circo porque um palhaço fazia graça junto. Uma mulher bem gorda me chamou enquanto papai comprava pipoca. Puxou do carrinho um espelho. Falou que eu tinha olhos muitos bonitos e perguntou se podia emprestar eles. Eu disse que sim. Vi meu rosto por uns três segundos no reflexo e não vi mais nada.

Fiquei parado até meu pai me pegar pelo ombro e começar a gritar. Ele enfiou o dedo nos buracos pra saber se tava ficando louco. Não tava. Foi difícil me acostumar com a cegueira e nem chorar eu conseguia, por motivos óbvios. Aprendi a ouvir as coisas de verdade, fazer tudo com calma, pedir ajuda. Meu pai bebia pra engolir a culpa, justo no minuto em que virou as costas.

Esperando o ônibus na praça, ouvi a voz daquela mulher de novo. Dois anos haviam se passado. Ela agradeceu. Fez o que precisava e queria devolver os olhos. Pisquei e enxerguei. Tavam diferentes. Agora eles avançavam e voltavam no tempo. Papai mandou guardar segredo, falou que a gente ia fazer aposta, ficar rico.

Na escola, todo mundo quis saber como consegui os olhos de volta. Obediente, disse que não sabia. Insistiram e virou coisa de Deus. Quando o negócio sossegou, Marquinhos pediu um lápis.

Falei não. Nunca mais empresto nada.