Poltrona

  • 18 de junho de 2015
  • Categoria: Comédia

Peidaram. Peidaram em mim hoje.

O que me deixa indignada não é nem o peido. Pô, o negócio vem, não tem muito o que fazer. Sai assobiando, derrapando, respingando, não importa. O que me tira do sério é a pessoa não levantar a bunda. Porra. Peidou, ergue a busanfa pra circular o escorraço que saiu de dentro de você, não fica guardando que nem galinha guarda ovo, liberta pro mundo, remove os grilhões de jeans. Caso contrário o troço cozinha e entra no meu estofado e gruda na minha espuma e no meu esqueleto e custa a sair. Até porque não para de chegar traseiro pra esquentar a minha cara.

Você leu a cláusula contratual? Era um dos possíveis desdobramentos. Afinal, todo mundo senta com a bunda. E a bunda, bem. Eu sei, doutor. Não tô reclamando da sentada em si. Adoro. Vivo pra isso. Gorda ou magra, espinhenta, cabeluda, suada. Se senta macio ou com tudo, tanto faz. Tô lá, firme e forte, braços abertos. O que me irrita é o peido. Como não posso reclamar sou obrigada a aturar de bico calado.

Por que acha que as pessoas não levantam? Vergonha, doutor. Acham deselegante. Como se todas não fizessem a mesma coisa, não fossem máquinas biológicas criadas pra fazer exatamente isso. Mas é proibido, ainda mais num consultório médico que não aceita plano de saúde, não coloca máquina de cartão de crédito porque acha parcelamento o ó e tem secretárias que se contorcem quando ouvem a palavra SUS.

Acredita que caso realocada para outro ambiente se sentiria mais realizada? As pessoas peidam em todo lugar, você entende isso, certo? Claro que entendo, doutor. Não é o peido, como eu disse, é não levantar. Você tem a impressão de que num ambiente mais casual a reação seria diferente? Creio que sim. Sabe que há muitas vantagens no consultório médico, muitas matariam para estar no seu lugar. Ar condicionado, TV, pano úmido semanal. Não corre risco de se sujar com comida ou coisas piores, de ser furada…

Sei disso tudo, doutor. Mas, por favor, se puder me ajudar. Alegue o que for necessário. Depressão, incompatibilidade, stress. Acho que é a única solução. Não dá pra ser feliz desse jeito. Entendo. Vou registrar no laudo. Em casos assim é fácil conseguir a transferência. O problema é onde você pode parar, a realocação é aleatória. Do jeito que eu tô, doutor, qualquer lugar é lucro.

Atrás da vitrine da loja, anos mais tarde, ela sonha com grãos venenosos entre as nádegas, amargando a dessentadura dos dias.