Pôr do sol [#224]
Débora via o céu dançar naquela paleta de cores quentes até a escuridão engolir tudo. Todo dia. Onde estivesse. Se fosse um lugar fechado dava jeito de sair pra gastar os ritualísticos minutos em contemplação. Era o único caso conhecido de transtorno obsessivo-compulsivo com o pôr do sol. Ninguém entendia o motivo.
Sempre deixava pra aproveitar as melhores coisas nesse horário: comer Danoninho, ouvir o CD novo, ler um livro, abrir os presentes, tomar água de coco. Depois, quando o namorado vinha, enrolava até o laranja aparecer pra enfim sucumbir aos seus apelos. Quando visitava o túmulo do pai ia no fim do dia e só saía à noite.
Marcou a cesária da filha pras seis da tarde. A da segunda filha também. O casamento foi no gramado do clube, todos de óculos escuros pra enxergar a cerimônia. Quando saía mais cedo do serviço parava na padaria, esperava aquele cenário onírico se desfazer pra só então se enfiar no casebre atrás de pão e queijo. Até doente e de cama acordava sem alarme, abria a janela, dava um jeito de se banhar no ocaso da natureza.
A mãe frequentava um centro espírita e a levou junto pra tomar passe. Comentou sobre o transtorno e um senhor muito velho disse que podia fazer regressão pra tentar identificar a causa. Aceitou. As técnicas hipnóticas a fizeram retroceder no tempo. Vendo a própria vida de trás pra frente, Débora chegou à imagem de si mesma neném no colo do pai. Não conseguia lembrar de seu rosto a não ser por fotos mas ali estava, perfeito. Na varanda de casa, na cadeira de fio, dizendo “Olha, filha, tá vendo o sol se escondendo na terra, lá longe? Não fica triste. Amanhã ele volta. Quando você perder alguma coisa que gosta muito pensa no sol. Sempre tem algo pra substituir o que perdemos”.
Quando acordou perguntou pro velho o que ele achava. Ainda não entendera. Ele disse que era simples. “Pai a gente só tem um, Débora.”