Publifagia [#188]

Nunca esqueci a primeira vez que Maria passou por mim.

Senti a atração quando ela dobrou a esquina. Os cabelos esticaram e apontaram, mamilos endurecidos, unhas em posição de sentido. Fui obrigado a colocar um pé diante do outro e cruzar a rua e segui-la levitando sobre a calçada. Agarrei um poste pra perseguição não alcançar o nível de estranheza que faz as pessoas sacarem o celular e gravar a cena pruma posteridade que nunca chega e só ocupa espaço.

Semanas mais tarde soube que ela vinha a três quadras de distância. Prevendo o pior enlacei as pernas na base do banco, os braços no hidrante, virei a cabeça. No ponto de maior proximidade senti os botões da camisa e os cadarços e a gravata e o cinto e a correntinha esticados febrilmente na sua direção. Perguntaram se eu estava bem, a cara vermelha de esforço para não ser subjugado por aquela fisgada inexplicável.

O terceiro encontro foi fatídico. Senti a pontada cinco minutos antes. Repeti o processo e me segurei no banco e no hidrante mas assim que ela dobrou a esquina a força falhou. Fui tragado, levado pela correnteza invisível, cruzando a avenida movimentada e me chocando com carros e pedestres. Acertei-a em cheio e rolamos dezenas de metros parque adentro. Curiosos vieram acudir. Quando nos acharam entre as árvores gritaram. Estávamos colados, uma satisfação genuína estampada nas caras.

Ficamos naquela união transbordante, peles se tornando pele, ossos se tornando osso. Levantei e senti Maria dentro de mim, acariciando cada quina do nosso aquário vital. Depois de algum tempo a sensação aquietou e me acostumei. Dos retratos no período sempre disse que aquele sorriso nada tinha de meu; era todo dela.

Estranharam quando passei a comer por dois e não engordei. Estranharam minhas piadas sem graça sobre gravidez. Estranharam quando o bebê nasceu evaporando dos poros, se moldando na minha frente no que viria a ser Maria. Me deu um abraço apertado, chorando, agradecendo, perguntando se havia alguma maneira de retribuir.

Ela já retribuíra. Eu agora possuía seu tumor abrigado no peito, florescendo belo como os dias que ainda não nasceram. Para uns a cura era a vida, para outros a morte. Para mim era a poesia insólita inscrita nas veias de uma segunda chance.