Raio [#222]

Oooommmmmmmm Oooommmmmmmm Oooommmmmmmm

Começa a chover. Não posso parar. Sinto a conexão com a terra, com o vento, com as moléculas de água, com a vida, pulsando nessa música que reverbera na garganta e faz tremelicar até o dedinho do pé. É como mestre Zuni falou, exatamente como previu no–

KRAKABUMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM

Fico surda. Os cabelos armam com a estática, os dentes sambam nas gengivas, os pelos queimados coçam, um pinicar insuportável nas extremidades do corpo. Cheiro de churrasco. Mantenho o foco.

Oooommmmmmmm Oooommmmmmmm Oooommmmmmmm

As palavras de mestre Zuni no YouTube. Mil e dezessete visualizações. A humanidade não sabe reconhecer seus prodígios. “Medite num lugar alto, como no terraço do prédio ou no telhado de casa. Feche os olhos e deixe o poder do mantra guiá-lo. Deixe-se fundir no ar, seja uno com a natureza e a voz divina virá para imbuí-lo de propósito. Deixe-se navegar no ritmo. Deixe-se”. Os pensamentos clareiam e posso ver os erros e acertos da minha vida em uma maquete tridimensional, rodear os gráficos em forma de pizza e tocá-los ouvindo relatórios lidos pelo Nelson Gonçalves. Onde errei: o casamento, as amigas, a mãe. Onde acertei: o filho, o emprego, a cidade. Lembro da diminuta contribuição que preciso depositar para a Ordem Zunita.

Oooommmmmmmm Oooommmmmmmm Oooommmmmmmm

A mensagem do mestre chega por ondas telepáticas. “Isso, jovem. Você ultrapassou o limiar. Se uniu ao divino, se provou na Terra, foi banhada pelo cosmo em sua manifestação mais sublime. Agora viva plenamente. E pense nas palavras que usará para espalhar a boa nova. Você é uma das nossas” e segue em variações e adulações, suprimidas pelo retorno da audição e pelo rosnar de novos raios. O choque ainda vibrando na espinha e a dor atravessando o crânio, encerro um último Oooommmmmmmm e pulo do telhado.

Entro em casa. A luz não funciona. Um brilho lá fora me mostra o reflexo no espelho. Torrada, fumaça saindo da cabeça. Apanho o celular pra discar na emergência e descarrega no primeiro toque. O coração fisga. Mestre Zuni observa da parede quando agarro o peito. Meto a mão na sua cara. Sinto o fôlego acabar segurando o retrato, orando para que me salve, para que isso seja parte da provação. Os dedos convulsionam, o mestre cai. A última coisa que vejo na moldura que sustenta a foto do verdadeiro messias é a inscrição na base: Made in Taiwan.