Um gino incomoda muita gente

Gordo esperava as luzes da fábrica se apagarem. A luminosidade borrada das janelas e dos postes tremeluzia pela densidade da água feito um papel erguido contra o vento. Suas mãos flutuavam. Pequenos peixes rodeavam os braços e se embaraçavam, cabeceando prum lado e pro outro, admirados com o novo obstáculo no fundo do rio. Gordo coçou as guelras dos tornozelos num emaranhado de rochas pontudas.

Quando a escuridão vigorou, com exceção da mãe de todas as luzes brotando de algum ponto distante, Gordo pegou impulso no chão lodoso, se agarrou na beirada do rio e rolou pela grama. As guelras se fecharam e as narinas inspiraram um misto de folhas, fumaça e eletricidade. Agachado, observou toda a extensão das grades e o portão. Dois guardas conversavam ali, um dentro e um fora, armados, com os pontos pregados nas orelhas. Se aproximou rastejando e parou atrás da moldura de ferro do portão, ponto cego pra ambos. Apanhou uma pedra e jogou por cima da grade. O tunc soou e o homem de fora falou “ouviu isso?” pouco antes de Gordo agarrá-lo pelo pescoço e enfiar a mão em sua boca, os dedos tentaculares abrindo caminho pela garganta.

“César?”, disse o segundo homem. Informou pelo ponto que havia algo errado e abriu o portão. Encontrou o companheiro desmaiado e Gordo aos seus pés, fingindo de morto. Quando o homem agachou, Gordo lhe deu uma coronhada com a pistola. Atravessou o portão, alcançou a fábrica e pulou na parede. Rastejou pra cima enquanto ouvia os guardas saindo pelas entradas e enchendo o terreno, procurando-o. No terraço, destrancou a porta com um esguicho de saliva baba de quiabo e o dedo azeitado.

Desceu dois andares pela escadaria e entrou no antigo corredor e pela antiga porta. Agora havia três tanques cheios da água viscosa, dentro de cada um deles um gino inconsciente, plugados a computadores espalhados pelo laboratório entre pilhas de papel e pastas. Um cheiro forte de calabresa no ar, provavelmente pizza que os pesquisadores pediram no turno da noite, pensou. Barrou a porta empurrando e encavalando várias mesas. Abriu a tampa do primeiro aquário, fez o máximo pra ignorar o fedor de vinagre e mergulhou, desplugando todos os cabos e tubos, sangue espiralando dos encaixes. Abriu uma rede compactada que trazia na pochete e quebrou o lacre. Ela se expandiu na água e Gordo envolveu o gino da cabeça aos pés, fechando os ímãs e ensacando-o. Repetiu o processo nos outros dois, ouvindo os guardas baterem na porta com força. Ao sair do último aquário, percebeu que usavam alguma espécie de aríete.

Quebrou o lacre de outra rede acima da cabeça e deixou ela envolvê-lo. Sentou e conectou os ímãs. Sorriu pra câmera que filmava tudo. Quando os guardas entraram e atiraram os dardos na sua direção já não estava mais ali, e tampouco os outros três espécimes em estágio final de incubação.

Gordo se desenredou no chão do armazém e ajudou Carlita e Tomé a instalar os três ginos nos aquários substitutos, sem fios e tubos, apenas água saudável para que acordassem em alguns dias. Depois entrou na jacuzzi com uma garrafa de vodca na mão. Queria saborear o momento.