Vocêu
Olhos cravados na mão dele. A quantidade de pele solta, enrugada, unhas amareladas e grossas com aquela meia-luinha perto do dedo, esqueci o nome, aquela coisinha branca que parece que continua por debaixo da…
Lúnula, ele diz. É o nome disso. Se concentra. Eu sei que é informação demais. Mas me ajuda aqui.
Me explica de novo, digo.
Caramba, guri. Tu é difícil. Lembra de tudo que eu expliquei que vai acontecer, certo?
Lembro, digo, pensando nos vídeos que ele mostrou, eu terminando a faculdade, casando com o Marcelo, adotando a Júlia e o Gominho, o Marcelo viajando pra cobrir uma revolta no Iêmen, sendo linchado porque viram a foto dele comigo na carteira, eu entrando em depressão, criando as crianças como pai solteiro até encontrar o Roberto, casar de novo, os dois indo pra faculdade em São Paulo, eu batendo o carro na estrada, operando a perna e nunca parando de mancar, criando um instituto de humanização apenas pra vê-lo destruído por um homem-bomba brasileiro, sobrevivendo com implantes, assistido pelo Gominho e a esposa dele quando se mudam pra nossa antiga casa, eu virando o avô mais legal do mundo com um olho biônico, ajudando os três netos a montar uma barraca de limonada na esquina, sendo visitado uma noite pelo meu antigo eu de 23 anos, que me explica que algo deu errado, que precisa de mais tempo pra terminar a pesquisa de reversão temporal e ser capaz de retornar a um momento específico quando lançar no espaço um bairro inteiro pra deixá-lo despencar em seguida gerará um choque forte o suficiente pra mover e impedir uma placa tectônica de no futuro desencadear um terremoto apocalíptico, e esse outro eu perguntando se a queda do bairro não mataria um monte de gente, e ele dizendo que um país pelo planeta é preço justo, e pra me convencer mostrando o vídeo do seu mundo pós-terremoto, em que a Terra se abriu em sulcos medonhos e os vulcões voltaram à ativa e o oceano foi quase todo tragado e a humanidade se refugiou em ilhas assoladas por tsunamis no fundo da Fossa das Marianas, e esse eu jovem se afirmando a última esperança de sobrevivência com suas pesquisas de viagem ao passado, que acabaram dando errado, conectando-o a um universo paralelo, o meu, mas muitos anos à frente, e esse eu jovem suplicando ajuda ao meu eu velho, esse com quem tô conversando, saído do maquinário parecido com um elevador que se materializou na minha sala ainda há pouco.
Se você lembra, o velho diz, então já sabe que eu sou você.
Disso você já me convenceu, digo. Quero saber o que esse outro eu do universo paralelo quer comigo. O que quer que eu faça, quer minha ajuda pra quê? Tô me formando em Assistência Social, não é muito útil pra esse futuro pós-apocalíptico, certo?
O velho me encara de lado, daquele jeito que eu faço quando tenho algo sério pra dizer.
Ele não quer nada com você. Ele precisa de mim.
Então por que você tá aqui?
Eu concordei em ir junto, guri. Ele disse que se pesquisar minha estrutura genética vai entender por que a máquina o mandou pro passado de outro universo e não pro passado do universo dele. Entendeu? Você não vai fazer nada. Eu é que vou. Não precisa se preocupar. Só vim aqui pra você ver a tua vida. Pra você ver o tanto que conquistou. E te mostrar que no fim das contas fomos felizes pra caramba. Mas pensei muito no que ele disse e decidi que uma vida por um planeta não é preço caro a se pagar. Entende? Quando eu for pro universo dele eu deixo de existir nesse. Você vai desaparecer. Vai sumir. Não vai viver o que tem pra viver ainda. É injusto. Eu sei.
Ele anda na direção da máquina. Se o que falou é verdade, só preciso impedi-lo de pisar ali dentro e pronto, vivo o resto da minha vida tranquilo, com meu manquejar, meus dois maridos, meus netos, meu olho biônico e minha barraca de limonada. Mas não me mexo. Ele para na abertura.
Eu sabia, ele diz. Eu sabia que você não ia me impedir. Nem quando entendesse tudo. Nossa maior qualidade é nosso maior defeito. Lembra que a mãe falava isso? Quando a gente voltava da escola machucado e sem retrucar porrada? Quando o Lezo roubou nossa namorada no terceirão e a gente continuou amigo? Quando passamos dois anos indo todo dia no hospital pra dormir com o pai e nunca reclamamos? Poisé. Ela tava certa. Brigado. Desculpa.
Ele pisa na plataforma e começa a desaparecer e eu não consigo dizer nada e sinto gosto de terra e