A cidade e a memória

Depois de atravessar bosques, trilhas e uma série incansável de morros, pode-se ver Balaia afundada no vale feito uma bola de chumbo jogada sobre a cama. O lençol engruvinhado, jorrando do centro em raias numerosas, representa os milharais que se alongam até o sopé das montanhas distantes. Atravessando-os, o viajante sente a vontade irresistível de colher as socas mais gordas e encher a bolsa.

Balaia é formada por casas e estabelecimentos simplórios, uma vila homogênea e empoeirada. Assim, de qualquer lugar é possível se deparar com o céu e sua miríade de nuvens amontoadas por crianças, ou com o sopro do vento que se lança das telhas rachadas da igreja e imita o silvo das chaleiras quando mães fazem gelatinas, ou com os sabiás enfileirados nas cornijas cujos cantos remetem à época em que a linguagem se resumia a um conjunto de gestos. Há algo de peculiar na arquitetura local, formas retas que são um convite à secura, aos números inteiros e a uma retidão moral arcaica. Questionados sobre o motivo da pobreza de curvas, os moradores evitam respostas diretas. Acossados, se limitam a dizer que elas podem nos fazer voltar ao princípio sem ter consciência disso.

No meio da tarde se reúnem ao redor de fogueiras, anciões mexendo barrigas de barro com enormes colheres de pau, e cada um deposita a quantidade de socas de milho que julga adequada. O recém-chegado é encorajado a dispor de tudo o que colheu na vinda. Quando prontas, despem as palhas, debulham em profundo silêncio, jogam no chão e aguardam o tapete maduro ser consumido pelos pássaros.

Dizem que o milho de Balaia é único. Para compreender esta máxima, é necessário participar da comunhão. Ao arrancar as palhas a mente do viajante é transportada para algum acontecimento prévio da sua vida, e os dedos debulhando os grãos se assemelham ao passar de páginas de um livro revisitado com a contemplação que o indivíduo não se permite no cotidiano. Até mesmo as crianças da cidade são sábias, pois vivem rodeadas pelo milho que nunca é plantado, nunca acaba, está ali desde sempre, vicejando, engordando os pássaros e envelhecendo o povo.


Este miniconto é o primeiro de uma série do Flash Fiction que presta homenagem ao belíssimo livro As Cidades Invisíveis (1972), de Italo Calvino. Conheça os outros:
2 – A cidade e o desejo
3 – A cidade e os símbolos