A cidade e o desejo

É sabido que aquele que deseja chegar a Eloá já chegou. Há algo de evocativo nas pilastras que ladeiam a entrada, marcadas com símbolos de giz branco pelos monges, mas admirá-las com a devida atenção é impossível devido à arrebatadora visão da cidade que toma forma centenas de metros abaixo.

Os habitantes de Eloá são muito solícitos com qualquer viajante, e é possível conhecer cada quina e curva ouvindo as mais variadas explicações das mais variadas bocas, andar por suas ruas estreitas e descobrir a época de assentamento de cada tijolo, telha e paralelepípedo, a trajetória dos pedregulhos chutados por pés ingênuos ou pés bêbados no rastejar incerto da madrugada, ouvir a crônica da destruição das balsas por um louco e sua posterior proibição pela prefeitura às margens dos rios que cercam a cidade, saborear a melodia de séculos esquecidos assoviada pelos velhos que se amontoam no limite de um banco de areia para pescar, imaginar os extintos temperos lembrados pelas matronas enquanto cozinham ao pôr do sol nos casarões inclinados do morro.

Nada supera o período de estadia em Eloá, pois basta pedir para ser atendido, exceto quando chega a hora de partir. Depois de muito insistir na ideia da partida o viajante é abordado por cada habitante num longo questionário a respeito dos seus motivos, e se percebe que todos aqueles que inquirem foram os que vacilaram ao apresentar as mesmas respostas, e vencida esta etapa o viajante corre o risco de titubear ao cruzar novamente com as pilastras que ladeiam a saída. É só neste momento que se percebe que os símbolos de giz são pedidos de socorro que os cidadãos enviam em segredo aos monges nos raros períodos em que o badalar mecânico de suas ocupações é rapidamente interrompido pela chegada de um novo viajante. As pilastras engolfam aquele que quer partir em um sentimento arrebatador de pena por todos que tão bem o receberam, de forma que padecer do mesmo destino parece a única resolução aceitável. Seu retorno nunca é comemorado.

Os monges com gizes de cera na mão rezam para que o próximo viajante decida deixar a cidade debaixo da chuva que lava os seus escritos. Mas a chuva só cai em Eloá depois que as pilastras cantam.


Este miniconto é o segundo de uma série do Flash Fiction que presta homenagem ao belíssimo livro As Cidades Invisíveis (1972), de Italo Calvino. Conheça os outros:
1 – A cidade e a memória
3 – A cidade e os símbolos