A casa na colina (2) [#81]

Cheguei no hotel e continuei a leitura do diário de onde havia parado. Felizmente, as reclamações da infância sofrida de Edward O’Malley acabavam perto da metade, e a caligrafia mudava drasticamente daquele ponto em diante, uma escrita mais corrida e, pelo que me parecia, apavorada.

Ele relatava um machucado estranho que ganhara não sabia como: dois buracos fundos na barriga. Em seguida vinham os pesadelos que começara a ter com uma cobra, sibilante e horrenda, que lhe falava numa língua estranha e incompreensível. Os sonhos começaram quando tinha 14 anos, perto de seu aniversário, e seguiriam ocorrendo pelos 7 meses seguintes em que escreveu antes de parar abruptamente, na data que coincidia com a fuga de casa. Depois de algumas semanas passou a entender o que a cobra dizia: ele fora escolhido para construir seu altar na Terra. Neste ponto o diário era tomado por desenhos geométricos e anotações miúdas e ilegíveis, símbolos estranhos e listas de materiais de construção, plantas baixas e cálculos. Havia no fim um desenho à mão livre que muito se assemelhava com a casa na colina que era a minha herança, cuja visão me fascinara.

Assim que terminei a leitura, no meio da tarde, resolvi voltar à mansão, dessa vez decidido a entrar. Subi a trilha abandonada atropelando o matagal que dominava o terreno, estacionei e peguei a lanterna do porta-luvas. A grande porta da frente estava destrancada. Abri com cuidado e o cheiro de mofo e pó inundou minhas narinas. Com passos vacilantes entrei, cuidadoso para não quebrar o silêncio, temeroso de que algo ou alguém estivesse por ali de tocaia. Procurei no diário uma página que me chamara a atenção antes, o desenho de um corredor oculto anexo à biblioteca. Folheando até encontrá-la, percebi como o interior da casa refletia com perfeição as anotações perdidas que O’Malley fizera pelo menos 10 anos antes de iniciar a construção do lugar, constatação que me causou arrepios.

A biblioteca ficava nos fundos. Na mesa havia um grande livro preto aberto, mas o ignorei e procurei alguma abertura atrás da estante. Notei uma rachadura fina no gesso perto de uma das quinas e forcei o móvel com todo o meu peso. Me vi diante de um pequeno corredor. Nas paredes, tochas acesas indicavam que ainda havia vida naquele lugar exótico, e tomado por alguma espécie de curiosidade mórbida, dei o primeiro passo.

O corredor úmido e frio seguia reto por alguns metros mas logo descia, uma rampa íngreme e circular que adentrava o coração da colina sob a casa. No fim uma pesada porta de madeira com um trinco enferrujado barrava a passagem. Eu sentia o coração acelerado, incapaz de entender porque fazia aquilo se todos os meus sentidos de preservação gritavam para que eu desse as costas e fugisse de volta para Londres. O diário em minha mão parecia me imbuir com um desejo sobrenatural de seguir em frente, e obedeci ao impulso virando o trinco e empurrando a porta.


*Este foi o segundo capítulo da Trilogia Terror. Confira os outros:
[1] Herança inesperada
[3] A deusa na urna