Herança inesperada (1) [#80]

A maior parte das respostas que recebi na cidade foram uma variação desta: a casa no topo da colina foi projetada e habitada por um arquiteto enigmático.

Além disso, contaram que o tal arquiteto veio da Irlanda em algum navio naufragado na costa, o único sobrevivente a contornar as pedras e chegar vivo à praia. A senhora Sturgens, uma jovial figura de 95 anos, disse que inventaram tudo isso com o tempo, fábulas e superstições, e que ele na verdade se chamava Edward O’Malley, um homem encantador escondido atrás de ternos lúgubres e um topete calculado, que chegou a lhe oferecer alguns drinques quando descia à cidade, recusados diante do olhar acusador de um irmão ciumento. O’Malley pelo jeito viveu na casa que ele mesmo desenhou por pelo menos três décadas antes de desaparecer sem explicação no verão de 1973, ainda solteiro, isolado e misterioso.

Quando descobri que o irmão de minha bisavó, até então desconhecido, falecera e me deixara uma herança, não esperava encontrar entre suas caixas de documentos o diário incompleto do jovem Edward O’Malley. Edward foi o seu filho, portanto meu primo de terceiro grau, e saiu de casa cedo para se distanciar do pai violento, esquecendo o diário na pressa. Em algum momento do início de sua vida adulta Edward migrou para a Inglaterra, possuidor de uma riqueza inexplicável com a qual construiu a casa, e que o manteve até seu desaparecimento. Na prática isso quis dizer o seguinte: a casa da colina fazia parte da herança.

De posse do diário, tirei férias de minha vida de contador na capital, aluguei um carro e vim para o interior. Além das histórias genéricas e do testemunho valioso da senhora Sturgens, descobri que nunca me adaptaria à vida insossa do interior inglês. Minha inclinação, antes mesmo de visitar a casa, era vendê-la pelo preço que conseguisse e com o dinheiro dar entrada num apartamento no centro de Londres. No único hotel da cidade, me debrucei sobre o diário de O’Malley para extrair dali tudo que pudesse do meu antepassado antes de conhecer sua antiga morada. Mas não era uma leitura agradável e exigia longas pausas, que usava para visitar os bares e conversar. Os habitantes evitavam a casa abandonada e as crianças morriam de medo das histórias de fantasma que a rondavam.

No terceiro dia, cansado da apatia da cidade, resolvi calçar o tênis e correr até a casa. Ela ficava a cinco minutos de carro do hotel, cerca de meia hora a pé. Quando enfim a avistei da estrada, senti um calafrio. Era de fato assombrosa e fascinante. Dei meia-volta, sem entender bem o porquê, decidido a chegar no hotel e concluir a leitura do diário antes de adentrá-la. Até onde eu lera, O’Malley reclamava da vida pobre como qualquer criança em sua situação o faria. Mas fui dominado pela impressão de que em alguma página daquele diário eu descobriria algo importante sobre O’Malley e a casa. Uma obsessão que não era de minha natureza começava a me consumir.


*Este foi o primeiro capítulo da Trilogia Terror. Confira os outros:
[2] A casa na colina
[3] A deusa na urna