O mistério é desvendado (5) [#158]

 ___algum lugar da Europa, 13 de agosto de 1911___

Harkinen recuperou a consciência, a cabeça latejando. Sentiu algo duro na têmpora esquerda que presumiu ser sangue seco. Tentou tocar o local mas as mãos estavam atadas atrás das costas. Diante dele, a visão ajustando, um velho apoiado em uma bengala, bem vestido, asseado, cabelo lambido para trás deixando a cara enrugada de olhos fundos em destaque.

- Fibonacci criou a sequência a partir da observação da reprodução dos coelhos, sabia disso?

- Onde estou? – o detetive se percebeu em um salão, sentado. Na parede, uma estante com materiais hospitalares: frascos, seringas, bandagens, gazes, luvas, máscaras. Virando a cabeça o máximo que pôde, viu uma maca logo atrás de si.

- Meu templo. Minha casa. Você sabe, tente recordar.

Harkinen lembrou da própria orientação para reunir todos os cidadãos de exatos 89 anos em locais protegidos, seguro de que a próxima vítima teria essa idade seguindo a lógica dos assassinatos anteriores. Lembrou de duvidar do próprio raciocínio ao repassar pela milésima vez a última pista, a palavra “número”. Lembrou de acreditar que como a regra do jogo mudara a resposta talvez não fosse a mesma. Lembrou de ser derrubado na véspera a caminho da delegacia, onde confessaria o receio ao comissário. De despertar e apagar com solavancos de carroça.

Lembrou de acordar há pouco e ver um dos homens notificados pela polícia que dispensou auxílio; Edmund Vohemiaj, dono do hospital Santa Marta, administrado pelo filho desde sua aposentadoria. Lembrou de sentir-se um tolo por não fazer a conexão antes, julgando-o frágil para o papel de assassino. Tudo convergia; ele possuía recursos, era médico, culto, letrado. Restava saber quem o auxiliava.

- Eu esperava mais, Harkinen. Você foi incapaz de montar o quebra-cabeça, embora as peças estivessem à mostra. Pelo menos desvendou a lógica e previu a próxima morte. Não poderá impedi-la, contudo.

- Você é doente, Vohemiaj.

- Esclarecido, eu diria. A sequência de Fibonacci é mais do que parece. É a síntese do universo, o cálculo da proporção áurea. Quando dividimos um número pelo anterior na série chegamos ao valor aproximado de 1,618. A natureza segue esta medida em tudo, todas as curvas. As maiores obras da humanidade foram guiadas por este ângulo protegido e ensinado pelos iniciados. É a razão de ouro, o toque divino.

- É isso o que acha que está fazendo? Uma obra divina?

- Não, eu não teria condições. Meu trabalho não passa de uma representação. Você deve entender, a vida é uma busca incessante por significado. Eu precisava enriquecer minha passagem por esta terra. De forma incontestável, contundente.

- Por que as pistas? Os dicionários?

- Significado, como eu disse. E emoção para animar estes ossos decrépitos, devo admitir. Nesta cidade infestada de falsos profetas e especialistas, eu sabia quem seria o único com capacidade para compreender. Ainda que em partes.

Ele abriu a porta e por ela entrou um garoto enorme, cerca de 20 anos, rosto redondo, olhos infantis e nariz torto quebrado em alguma briga. Tinha traços característicos de retardo mental. Harkinen lembrou que foi ele quem o derrubou e jogou na carroça. Lembrou da primeira vítima, mão esfolada, indício de luta. E lembrou de ler nos jornais, há muito tempo, sobre o neto deficiente de Vohemiaj, trancafiado para escapar dos ataques de delinquentes. Ele ergueu e virou sua cadeira, deixando-o de frente para a maca.

O velho fez carinho no cabelo do neto e deitou. O garoto pegou uma corda e auxiliou o avô a passá-la ao redor do pescoço. Harkinen tentou se soltar.

- Não faça essa besteira, Vohemiaj. A troco de quê?

- Em nome da arte. De um fim belo e repleto. Por favor, não maltrate meu neto. É dócil feito criança, não entende o que faz. Ninguém em seu estado pode ser incriminado. Ele fica contente de ajudar o avô, não fica, querido?

O menino sorriu e apertou a corda. Foram longos segundos estrebuchando. A quarta morte. 89 anos, como previsto. O garoto largou a arma do crime e foi brincar com os cachorros no jardim. Nenhum dos funcionários estava na mansão aquele dia. O resto da família viajara para a casa de campo. Harkinen eventualmente se soltou e ligou para a delegacia.

O comissário o encontrou debruçado sobre a mesa do escritório, a cara enfiada em um grande livro. Fez duas ou três perguntas antes de se aproximar e notar a haste da flecha projetada do pescoço, uma poça de sangue no chão. Analisou a estante e viu a besta disparada oculta por vários livros, o fio disparador conectado à cadeira. Levantou o corpo gelado para analisar o que chamara sua atenção: um dicionário impresso em 1907 na Holanda pela Broers Warmint Ltd. A folha de cima fora rasgada, contendo as páginas 28 e 29.

O comissário era um homem simples, pouco afeito aos enigmas que tanto interessavam Harkinen e que acabaram por transformá-lo em recurso constante da força policial. Nem ele nem sua equipe tiveram perseverança para levar adiante as conclusões preliminares e sagacidade para identificar as fagulhas de genialidade e precisão do velho Vohemiaj. O detetive não teve o tempo necessário ou teria traçado as conexões restantes: a de que todas as páginas arrancadas, se submetidas à redução teosófica, resultavam em 1 e 2. A de que o ano presente, 1911, submetido à mesma técnica, resultava em 3; a de que no fim das contas 5 assassinatos foram cometidos; a de que o número da mansão, devido a um suborno na prefeitura, passara a ser 144. Apenas Harkinen identificaria o ciclo fechado dos 12 elementos iniciais da sequência de Fibonacci (1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144) e apenas ele teria honradez para reconhecer a habilidade do adversário caso não tivesse sido, ele mesmo, superado.

A única descoberta ao alcance da capacidade do comissário foi a folha rasgada do último dicionário, enrolada na bunda da flecha. Com o caso encerrado, acabou arquivada e esquecida. Ela fazia parte de um trecho inicial dedicado a traduções de conhecidas máximas do latim. Uma estava circulada:

Ars longa, vita brevis (A arte é duradoura, a vida é breve).


*Este foi o último capítulo da Pentalogia Mistério. Confira os outros:
[1] O mistério se inicia
[2] O mistério ganha corpo
[3] O mistério se confunde
[4] O mistério é calculado