Eriatarka
Ninguém veio.
As vozes voltaram a reverberar, agora entrecruzadas, roucas. Eram balidos, latidos. A escuridão e a segurança do submarino se liquefizeram e deram lugar aos contornos cada vez mais aparentes do teto com uma lâmpada oculta por um plástico fosco. Cerpin aos poucos recobrou o controle do pescoço. Piscou, olhando os arredores. Havia ao seu lado um cirurgião com jaleco branco e um crachá, “Dr. Wolfram Tarant”.
– Quase no fim. Não se mexa.
Os latidos vinham dos braços do Dr. Tarant, que não passavam de corpos longilíneos e peludos com cabeças de cachorro no lugar de mãos. Um deles rugiu, o bisturi entre os dentes.
– O que fez comigo?
– Nada que não seja essencialmente necessário. Precisa de asas se quiser voar.
– Asas?
– Sua metamorfose está quase completa. Moattilliatta, o último dos grandes Teraquetzales. É uma honra, assim como um pesar, fazer parte disso.
Cerpin não sentiu dores ou qualquer outra sensação tátil enquanto ouvia o médico cortar e costurar por baixo da maca e pelas laterais.
– Entenda que sou apenas um instrumento. Tremula Metacarpi. Eles é que dão as cartas.
– Não! – lembrou do pesadelo e do bicho rastejante que o seguira pelo deserto.
– Sossegue, rapaz. Você entendeu tudo errado. Só chegou tão longe pois é exatamente o que eles esperam. Precisam de um novo líder. Mas não um com o corpo flácido e limitado. Precisam da sua essência num maquinário imponente, num veículo adaptado às dificuldades que está prestes a enfrentar.
– Quem são eles?
– Você deveria saber melhor que eu. O que posso mostrar, se fechar os olhos, é a forma do seu inimigo.
Cerpin fechou. Viu, correndo pela floresta, um javali com as patas afundando no solo e presas avantajadas dançando à sua frente. O animal possuía uma espécie de aura gravitacional, muito mais ameaçadora que as presas, que tragava as cores das folhas, da grama, da terra e do céu, gravitando em torno de sua cabeça como um planetoide lançado no espaço, orbitado por asteroides incansáveis.
– Agora entende por que isso é necessário? – disse o médico.
Cerpin sentou na cama. Voltava a sentir o corpo, na verdade outro corpo.
– A escolha é sua – o Dr. Tarant espiralou no ar.
Sentiu as aranhas escalando novamente seus pés, saindo das paredes, acoplando-se às larvas que cobriam a espinha. Foi erguido aos poucos, abriu a boca para que as formigas que percorriam seus braços adentrassem a boca e entupissem as vias respiratórias com o fluido protetor. A vértebra se ergueu do chão, moldando-o. As amebas pulsaram e a tampa do cockpit foi fechada.
Antes de partir, ouviu um barulho difuso. Ora lembrava o rabisco de um lápis, ora o digitar de um teclado. Algo estralou. O impulso mergulhou sua consciência no nada.
Este drop é o quarto de uma série do Flash Fiction inspirada no álbum de estreia da banda de rock progressivo The Mars Volta, De-Loused in the Comatorium (2003). A sonoridade, as letras enigmáticas e o próprio conto escrito por Cedric Bixler-Zavala e Jeremy Michael Ward, que foi o ponto de partida conceitual da banda, formam a base referencial deste mini-projeto.
Leia os outros drops da série Despiolhado no Comatório:
1 – Percepção extra-sensorial inerciática
2 – Junção exoesquelética da ferrovia
3 – A embriaguez dos faróis
5 – Cicatriz
6 – Este aparato precisa ser desenterrado
7 – Televadores ex machina