Baldo e a ponte

Baldo chegou na cidade amaldiçoando cada buraco e desnível da estrada de chão. A bunda dormente reclamava, assim como as costas e os joelhos. Tá cansado, dotô?, disse Péricles, o assistente e sobrinho do prefeito, num sorriso carniceiro que deixava o dente quebrado à mostra. Baldo não respondeu, como não respondeu a muitas perguntas de Péricles pelo caminho.

Saltou da caminhonete na frente da prefeitura, um casarão largo e imponente, erigido no centro da cidade como um pináculo guardando a tudo e a todos, as casas pequenas e empoeiradas, as donas de casa tristonhas mastigando o amor doído dos maridos que se demoravam no puteiro lamentando a miséria e o calor, as crianças lambuzadas de mingau correndo pelas ruelas com joelhos ralados, os cachorros sarnentos bebendo na beira do Rio Itupeba, que atravessava a cidade. Bateu o pó da calça e bateu palma, ao que respondeu uma voz maltratada. Uma senhora negra e carcomida apareceu, o pegou pelo braço e caminhou pra dentro do corredor central. O dotô é o detetive que seu Josué mandou chamar, num é? Veio lá de Cuiabá, é? Vim sim, dona. E lá, comé que tá? Quente, Baldo respondeu, enfiando um cigarro no canto da boca. Pode fumar, dotô. Eu gosto do cheiro. Seu Josué fuma só cachimbo, é fedido, esse num é.

Ela bateu duas vezes e empurrou com o ombro. Seu Josué era um branquelão sentado na cadeira de couro, chapéu de vaqueiro e óculos de lentes enormes e amareladas. O índio! Finalmente! Ele saltou da cadeira, apertou a mão do detetive e saiu pros fundos do casarão. Dona Rosa, passa um café pra gente que daqui a pouco tamos de volta. Entraram na caminhonetona e o prefeito girou a chave e o monstrengo roncou e rugiu. Então, seu Baldo, o problema, como eu disse no telefone, é a ponte. Ontem mesmo convenci um pedreiro a fincar a primeira coluna de sustentação. Ele entrou na água pra marcar o lugar e saiu mordendo a língua e falando coisa com coisa. Amarraram o coitado, ficou louco. Baldo balançou a cabeça, olhando pelo buraco da janela.

Logo chegaram ao rio, trinta metros de uma margem a outra, correnteza calma. Mais adiante um balseiro carregava um grupo de pessoas para o lado de lá. As outras duas balsas estavam estacionadas, os balseiros cochilando embaixo de uma árvore.

Baldo desceu, tirou as botas, as meias, a calça e entrou na água. Catou um punhado de areia, cutucou com o dedo. Saiu. É, seu Josué, não é nada no rio. Uai, seu Baldo, não é possível. Baldo vestiu a roupa e foi na direção dos balseiros. Acordaram com o barulho de mato moído. Dia, disse Baldo. Dia, a resposta. Tô aqui com o prefeito tentando entender o que tem de errado com o rio. Tem nada errado não, disse um deles. O rio é arredio, só isso, disse o outro. Arredio, Baldo resmungou, olhando pro terceiro balseiro, que agora voltava com a balsa vazia. Vocês trabalham com isso há quanto tempo? Ah, alguns anos, né, Tonho? É, alguns anos. E ele?, Baldo apontou o terceiro. O Valmir tá aqui faz tempo, respondeu o próprio prefeito. Quanto tempo? Vish, faz tempo.

Valmir chegou devagar, flutuando sobre o rio, se impulsionando com o galho no leito úmido. Era velho, muito velho, extraordinariamente velho. Os cabelos brancos caíam perto da cintura, os nós dos dedos eram do tamanho de batatas, os pés rachados e quebradiços. Baldo tirou do bolso da calça um saquinho de veludo e jogou o conteúdo ao redor de si. O que é esse pó branco?, disse o prefeito. Sal grosso. Valmir pulou na margem. Baldo o encarou nos olhos e cuspiu.

Você veio pra me tirar daqui, não veio? A voz cavernosa desequilibrou o detetive. Eu vim, Valmir. Chega. Quantos dias já conseguiu dessa gente? Não o suficiente, disse o velho. Bom, é uma pena. Baldo agarrou a corrente com os totens de madeira e recitou algo numa língua esquecida. O velho gemeu, caiu de joelhos. Por favor, nunca fiz mal a ninguém. Estou aqui há mais tempo que eles. Por favor. Baldo continuou. O velho rolou pra dentro do rio, guinchando até a água tapar a boca. Baldo largou a corrente e abriu os olhos. O que aconteceu?, disse um dos balseiros, pulando pro rio atrás do parceiro. Não havia nada lá. O outro estava paralisado. Pronto, seu Josué, Baldo disse para o prefeito boquiaberto. Agora pode construir sua ponte. E os habitantes de Costado envelhecerão do jeito correto.

De volta ao casarão, recebido o dinheiro, dona Rosa acompanhou Baldo até a caminhonete para a viagem infernal de volta. Ocê não tomou o café por mó di quê, dotô? A senhora sabe muito bem, dona Rosa. O detetive espremeu o beiço, aguçou os olhos. É nosso segredinho, né, dotô? Dona Rosa, fui contratado pra cuidar do rio. Não do café. Pode ficar tranquila. Então boa viagem, dotô.

Péricles riu, abrindo a porta da caminhonete. Baldo fechou a cara.


*Fustibaldo [Baldo para os íntimos] é um personagem recorrente por essas bandas. Confira as outras aventuras do nosso detetive sobrenatural:
-Baldo e o asilo
-Baldo e a comida podre
-Baldo e o morto
-Baldo e a garoa
-Baldo e o chapéu
-Baldo e o alçapão
-Baldo e os choros da noite
-Baldo e a luz do elevador
-Baldo e o Halls preto
-Moleque bom