Baldo e o asilo

Quer dizer que o problema sou eu? Olha, seu Honório, creio que sim. O senhor tá com quantos anos mesmo? 143, filho. Baldo balançou a cabeça. O asilo ficava em Pomerode, cidade de Santa Catarina com forte influência da imigração alemã. O problema era que os velhos, além do alemão, agora falavam também árabe, romeno, grego, latim, hebraico. E esqueceram a velhice e as doenças, bebendo, fumando e se rendendo a grandes orgias no refeitório, no salão, no jardim. Nos arredores assassinatos, assaltos, suicídios e acidentes de trânsito se tornaram rotina. Passarinhos caíam mortos nas ruas, cachorros e gatos se atracavam em batalhas homéricas. A polícia vinha, indagava, esquecia e se envolvia na loucura toda. Seu Honório era o único inalterado, no epicentro do furacão. Com 143 anos. Só podia ser ele.

Me explica, seu Honório, viver tanto assim não é normal. É coisa do índio. Que índio? Quando eu tava com uns 70 anos morava em Corumbá, na divisa com a Bolívia. Era tudo Mato Grosso ainda, não tinham dividido o estado. Encontrei um índio na beira da estrada todo ferrado, três facadas na barriga. Coloquei no carro e levei pro hospital. Salvaram. Ele veio me visitar depois, disse que colou um guerreiro valente em mim, que eu ia viver muito ainda. E vivo até hoje. Só pode ser isso, né? Pode ser, seu Honório. Fecha os olhos pra mim, por favor. Baldo passou a mão sobre a cabeça do velho. Sentiu um choque nos dedos, foi empurrado, ouviu um grito numa língua desconhecida. É, seu Honório. É o índio.

Baldo olhou pela janela do quarto. No gramado do asilo, três velhas peladas dançavam ao redor de um leitão assando em uma fogueira. Uma quarta se balançava num galho. Seu Honório era atração turística. O ciclo vital já estourara toda e qualquer previsão e rebentaria a qualquer momento. Espíritos levianos de todos os cantos se concentraram ali, apostando no momento em que a proteção do índio falharia. A reunião inesperada transbordou e contagiou o outro lado. O caos estava restrito ao local e proximidades, mas só acabaria quando seu Honório se fosse.

Olha, seu Honório, o índio é forte mesmo. Isso tudo só tá acontecendo porque o senhor demorou demais. Quebrou as regras. Agora começou a atrair coisa ruim. O único jeito é se entregar, infelizmente. Morrer, você diz? Isso. É tudo o que eu mais quero, filho. Eu tento, inclusive. Mas não consigo. Que graça tem viver desse jeito? Até pra respirar dói tudo. Não aguento mais. Conversa com esse índio, vê se ele me deixa. Baldo ficou surpreso. Se seu Honório queria morrer, não havia motivo para o espírito do índio impedir. Era raza brava mesmo. Puxou da mochila um pacote de sal grosso, pediu para o velho colocar folhas de sálvia sob a língua e segurar um pedaço de granito branco. Vou tentar quebrar o contato dele com o senhor por alguns segundos. Vai, filho, faz de uma vez. Baldo jogou o sal, vocalizou o mantra e sentiu o peso do índio se afastar. O velho arregalou os olhos, levou a mão ao peito, caiu morto. O coração só aguentava com ajuda.

Baldo saiu rápido da área afetada, receoso de ser afetado também. Desviou das pessoas confusas pelo caminho. Logo voltariam ao normal, o interesse ali esgotado. Sentiu uma presença forte segui-lo. Muito além de Pomerode ela ainda o acompanhava. Ganhara um inimigo. Mais um.


*Fustibaldo [Baldo para os íntimos] é um personagem recorrente por essas bandas. Confira as outras aventuras do nosso detetive sobrenatural:
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-Baldo e a comida podre
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-Baldo e os choros da noite
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